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A princesa que não queria ler



Inesquecível o momento em que sentiu o indicador a percorrer a sua lombada: era ela a escolhida. Quando percebeu que a puxavam, arrepiou-se, susteve a respiração e fechou os olhos. Nem teve tempo de se despedir das histórias amigas. Mas a ideia de que iria viajar nos olhos de uma criança imediatamente apagou essa mágoa.
Porém, quando reabriu os olhos, sentiu algum receio. Tudo tinha ficado escuro e sentia-se muito apertada entre as folhas. As amigas já a tinha prevenido para essa possibilidade. Seria só por umas horas. Aguentou firme até ao momento em que ouviu um ruído arrepiante. Nesse instante, apodereou-se dela um medo terrrível, pensava que cada palavra podia dividir-se para sempre, sílaba por sílaba… Ficou lívida, a cor das letras confundia-se naquele momento com a cor das folhas: “Será que rasgam as minhas páginas, espaço onde habito e faço sentido?”
Depressa percebeu que alguém desfazia o papel que a embrulhava, sentindo, de novo, confiança. Em breve, daria de caras com os olhos de uma criança. Por isso, não deixou de espreitar pelas estreitas janelas que o espaço entre cada folha permitia. Quem seria?

- Um livro!? – conseguiu ouvir.
- Sim, um livro, aquele que a professora sugeriu, lembras-te?
- Um livro!? – desta vez ouviu melhor e sentiu algum desalento nas palavras da princesa.
- Já reparaste na ilustração? E o título, já leste o título?
- Sim. Não gosto! - respondeu com desdém.

A história continuou em cima da mesa, sentia-se maltratada. Pediu então à lombada que apertasse as folhas para poder ficar completamente às escuras. É que corria o risco de ficar perdida no fundo de uma gaveta, ou esquecida numa estante abandonada no sótão. Sentiu, por isso, uma tontura e escondeu-se atrás de todos os circunflexos, dos parênteses e das aspas que conseguiu reunir. Não aguentava aquela humilhação.

- Não gosto de ler! - ouviu ainda.

Nesse momento, refugiou-se nas páginas centrais para não continuar a ouvir as barbaridades que lhe manchavam as folhas. Ficou completamente desalinhada.
Daí a pouco, reuniu os parágrafos para recolher opiniões. Eles estavam habituados a suportar a sua mudança de humor sempre que mudava de linha. É que as palavras nem sempre aceitavam com facilidade passar para a linha seguinte, por preguiça ou por não quererem separar-se das amigas mais chegadas.
- Não temos solução para este problema. Com sorte, pode ser que voltemos à estante e à companhia das tuas amigas histórias. Falamos há pouco com um folheto perdido e encostado à folha de rosto. Contou-nos que só ele poderá fazer-nos regressar.
- Pois, neste momento, a troca seria o melhor para nós– reagiu a história ainda muito encolhida.
- Eu tenho ainda mais receio – interveio o marcador. A qualquer momento posso cair ao chão e ninguém se lembrará de me socorrer. Tenho muitos amigos que terminaram assim ou foram parar ao interior de histórias horríveis, insuportáveis.

- Vamos deixar o livro no quarto, aqui. – ouviram daí a pouco. Era uma voz carinhosa, confiante, segredada.

A história nem teve tempo de se reposicionar nas páginas. Daí a pouco, sentia a capa numa pequena mesa ao lado da cama da princesa. Imediatamente, pediu ao marcador para ficar alerta. Era ele o único que tinha o privilégio de ver para além das folhas, qual periscópio de um submarino a navegar num mar de palavras.
- Silêncio! – ordenou o marcador.
Todos ficaram quietos. Suspensos. E agora?
- Naaaaaaaaaaaão! - quis gritar a história mas atempadamente impedida pelas badanas.
O marcador tinha decidido. Deixara-se cair.

No silêncio escuro, a princesa quis saber de onde vinha aquele barulhinho. Ligou a luz do telemóvel e procurou no chão. Rapidamente, decobriu o marcador e abriu o livro para o abandonar na primeira página que o quisesse receber.
Abriu uma, abriu outra e mais outra. Não se decidia. Cobriu a cabeça com o lençol e releu o título. Toda a história se escondeu atrás da folha de rosto e rezou para que a princesa virasse mais uma página.
O silêncio era luz quase suficiente. As palavras, o silêncio, a luz.
Virou e leu! Passou a barreira do título e avançou!
O folheto encostou-se à badana e adormeceu descansado. O marcador sentia-se admiravelmente preso entre o polegar da princesa e a folha onde a história acontecia.
A princesa e a história estavam agora juntas, o mundo acontecia naquele pedaço de luz que se escondia no silêncio do quarto. Nenhuma delas ouviu o movimento satisfeito da porta que se deixou encostar, nem a frase sussurrada e feliz:
- Voltamos quando adormecer, naquela tenda há duas histórias para contar!


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