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Pessoa ou a dor de não pensar

Foi quando ela levantou o braço, procurando uma oportunidade para intervir. Perante a anuência do professor, avançou:   - Não lhe parece que nesta passagem poderá verificar-se também uma antítese?   O silêncio que se fez abriu uma clareira que o colocou na berlinda. Começou por assegurar a presença da anáfora no verso de Pessoa, procurando depois trilhar o caminho da contradição que ela propunha. Como era belo aquele momento ! As palavras desinstalava m . Inesperadas, abriam novas possibilidades.   - Terás de explicar, desdobrar melhor essa possibilidade.   E ela reafirmou a oposição, mostrando as ideias nas palavras ditas e nos gestos suaves que as revestiam.   - Parece-me forçado, dado que implica outros verso s que não consideramos neste item.   - Mas as palavras deste verso estão intimamente ligadas às dos anteriores e considero evidente a oposição, a presença de ideias contrárias.   Não era aquela a resposta que ele trazia preparada nos critérios de classificação, mas mostrav
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Seguimos para a fonte

Seguimos para a fonte Paráfrase imperfeita   O ácer tocava levemente as camélias Era a brisa força sempre insatisfeita que os unia naquele compasso secreto sereno paciente   E tu passavas pisando suavemente as folhas que quiseram ser caminho Ias descalça Ias para a fonte   Uma abelha bailava junto das azáleas beijando-lhes as flores Vermelhas   Um desejo quieto Um encolhido ousar   E tu passavas mais branca que a neve pura Sempre   A luz do Sol morna e silenciosa brilhava lentamente nas pedras da calçada Quatro gatinhos dormitavam esperando naquele tempo ausente   E tu passavas mais branca que a neve pura Sempre   Posso ajudar-te Certamente   E seguimos descalços para a fonte   As palavras ainda procuram alcançar-te só porque te vejo minha senhora  

O amor é que nunca vem só

      O Mateus estava sentado no sofá ao lado das irmãs, a Clara e a Teresa. A Inês não estava, tinha saído para trabalhar.      A televisão permanecia ligada, mantendo a esperança de que algum deles por momentos a fixasse. Passeava cada um no seu telemóvel, ao sabor das imagens e dos vídeos que julgavam ser da sua escolha. O pai e a mãe também faziam o mesmo exercício, procurando, nas aplicações dedicadas, as conversas mais ou menos interessantes, as últimas publicações dos amigos mais ou menos conhecidos, os produtos mais ou menos úteis, mais ou menos usados.      E assim permaneciam numa proximidade ausente.      O pai foi o primeiro a levantar os olhos para reparar naquele cenário. Repentinamente ocorreu-lhe uma ideia talvez inoportuna, pelo menos inesperada, a que se agarrou por momentos: consciência coletiva. Nem mais. Era como uma pedrinha no sapato quando caminhamos em tempo de férias.       Ali, na casa onde passavam alguns dias, tinham acesso apenas a meia dúzia de canais. Um

E os passos que deres... Dá-os em liberdade

E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro Dá-os em liberdade. TORGA, Miguel, 1999. Sísifo, «Diário XIII».  Em Antologia Poética. Lisboa: Dom Quixote (pág. 446)   - Pai, em que pensas? - Não sei bem... - Acho que não me queres dizer. Encolheu os ombros e desviou o olhar para fugir daquele cerco. - Pareces preocupado – insistiu. Rodou várias vezes nos dedos a argola que ainda permanecia na mesa. Presos nela, presa neles. Pensava naquele rapaz que espantosamente se alongava todos os dias. E recordou que alguns minutos antes ele lhe pedira para abrir a mão. Assim fizera. - Tens uma mão enorme, maior já do que a minha! - É de jogar basquete! – assegurara o rapaz. Podia ser. E não deixou de reparar nos pés que pareciam dois soldados prospetores enviados para analisar o terreno, passando depois o pelotão em segurança. Rodou várias vezes nos dedos a argola que ainda permanecia na mesa. Presos nela, presa neles. - Estou em crer que efetivamente estás a dar mostras de que algo não e

A farsa de folgar, era do Senhor de MMXXIV

  Matosinhos, 27 de fevereiro Espantou-se, ao entrar na sala, mas logo sentiu uma certa desilusão: viu uma plateia com dezenas de filas onde restavam apenas alguns lugares esquecidos ao fundo. Seguiu para lá e acomodou-se. Fixou por momentos o palco que permanecia sem luz, adormecido. Dali conseguia ver. Colocou o casaco sobre as pernas, a mochila junto aos pés e preparou-se para o espetáculo. Havia telemóveis que se elevavam para as efémeras selfies ou que se recolhiam no regaço para os intermináveis jogos. Tudo o que ali se passava era de imediato reduzido a frenéticos reels que se derramavam nas redes pouco sociais. Todos presentes, todos ausentes. Repentinamente, uma onda de imparáveis palmas, ou de gritos guturais, cavernosos, que mais pareciam apoiar a entrada de jogadores em campo. A plateia havia-se tornado num palco desgovernado onde cada ator se tornara protagonista. Não havia espaço para papéis secundários, muito menos para figurantes. Avisos... que não podiam fotogr

Era uma lágrima

Era uma lágrima Que resistia nos teus olhos Aproximei-me para ver melhor E logo correu pelos caminhos Sábios e honestos do teu rosto   Quis acolhê-la num beijo Era brilhante quente macia Oceano de paz que venceu Os meus sentidos   Procurei os teus olhos E logo outra se preparou Amparei novamente A tua alegria simples Transparente   Sinais líquidos de um amor Que só um beijo  Sabe acolher