E os passos que deres,
Nesse
caminho duro
Do futuro
Dá-os em
liberdade.
- Pai, em que pensas?
- Não sei bem...
- Acho que não me queres dizer.
Encolheu os ombros e desviou o olhar para fugir daquele
cerco.
- Pareces preocupado – insistiu.
Rodou várias vezes nos dedos a argola que ainda
permanecia na mesa. Presos nela, presa neles. Pensava naquele rapaz que
espantosamente se alongava todos os dias. E recordou que alguns minutos antes ele
lhe pedira para abrir a mão. Assim fizera.
- Tens uma mão enorme, maior já do que a minha!
- É de jogar basquete! – assegurara o rapaz.
Podia ser. E não deixou de reparar nos pés que pareciam
dois soldados prospetores enviados para analisar o terreno, passando depois o
pelotão em segurança.
Rodou várias vezes nos dedos a argola que ainda
permanecia na mesa. Presos nela, presa neles.
- Estou em crer que efetivamente estás a dar mostras de
que algo não está bem na tua vida.
Resultou. O pai enfrentou-o, esboçou um sorriso, tal
qual o Sol que reaparece no céu no intervalo das nuvens lentas. Não resistia
àquele estilo parlamentar que o rapaz ensaiava nos últimos tempos. Gostava de
experimentar aquelas frases mais ornamentadas, aquele advérbio dourado, aquelas
perífrases talhadas para afastar o vazio.
Que estava preocupado com ele e com as irmãs! Mas não
se atreveu. Desviou.
- Formigas! Muitas formigas! – gracejou apontando para
a tira de madeira que desenhava o rodapé
da sala de jantar. Não consigo encontrar a entrada, o ponto de acesso.
- Outra vez formigas, pai!
Um, dois, um, dois.
As formigas aqui vão,
Um, dois, um, dois.
Em busca de alimento.
Um, dois, um, dois.
Nunca marchamos em vão,
Um, dois, um, dois.
Nossa meta é o sustento.
Um, dois, um, dois.
A Musculosa avançava com o pelotão, marcando o ritmo e
a direção. Alguns centímetros depois, parou, obrigando todas as companheiras a
esperar por novas orientações, mantendo disciplinadamente o seu lugar.
- Aguardamos aqui por informações.
As batedoras inspecionavam antecipadamente o percurso que
o pelotão haveria de percorrer. Um trabalho de enorme responsabilidade e que
não permitia distrações. Pouco depois, recebeu as primeiras notícias:
- Estamos perto do grande armário onde sentimos a
presença de incontáveis grãos de açúcar. O caminho é seguro, se avançarmos
junto ao rodapé onde nos podemos recolher sempre que houver ameaças. Contudo, a
entrada no armário obriga-nos a uma travessia muito desprotegida. A qualquer
momento, podemos ser pisadas e, desorientadas, perder os sinais que nos
conduzem de regresso ao formigueiro.
- A companheira que partiu contigo? - perguntou a
Musculosa.
- Não quis regressar.
- Parece-me que estão paradas – reparou o Mateus.
- Acho que tens razão. Devem estar a preparar o assalto
à nossa despensa – respondeu o pai, antevendo uma batalha difícil.
A Musculosa ficou em silêncio durante algum tempo.
- Alguma razão para não voltar?
A batedora respondeu que a companheira desejava viver
de outra maneira, seguir os seus desejos, abandonando a recolha de alimentos.
Estava farta de marchar a compasso e de fazer todos os dias a mesma coisa!
- Quer dizer que não percorreu o carreiro que lhe tínhamos
indicado e sobre ele não temos pormenores… - esperou pelo gesto afirmativo da companheira
e continuou – E deve querer alcançar o armário sozinha!
- Tentei demovê-la mas não me deu atenção.
A Musculosa chamou de imediato todas as companheiras responsáveis
por cada secção do pelotão que aguardava quieto, em silêncio.
- Temos apenas informação sobre um dos percursos. Uma
das batedoras não regressou, desertou e quis avançar sozinha. Esta decisão
traz-nos sérios problemas. Se a descobrirem dentro do grande armário, morrerá
de imediato e virão à nossa procura. Por isso, todas corremos risco de vida. Também
o nosso formigueiro sofrerá graves danos, se não regressarmos ainda hoje com os
alimentos necessários.
- Devemos continuar a marchar, seguiremos unidas pelo
carreiro assinalado pela batedora que não nos abandonou – propôs uma delas.
- A desmobilização neste ponto da nossa missão será um
desastre para todas – concordou outra.
A Musculosa lamentou ainda aquela atitude isolada. Que
não havia liberdade de escolha sem os outros! Ao ouvi-la, as companheiras trocaram
olhares surpreendidos. Nunca tinham pensado no assunto. Por fim, alinharam-se
concordantes. Uma delas reagiu:
- Musculosa, tens toda a razão! Nunca decidimos sem
considerar os outros. Se o fazemos, corremos o risco de ficar sós!
- Todas temos apenas a liberdade de dar o passo que não
interrompa ou complique os passos das outras! - acrescentou uma das mais
velhas.
De imediato, a Musculosa deu ordem para avançar em direção ao
grande armário. Era preciso concluir a missão antes do sol-posto.
- E, se avistarmos a companheira em fuga, tudo faremos
para que volte às nossas fileiras – assegurou decidida.
- Parecem-me bastante unidas – reparou o Mateus. –
Fazem-me lembrar o lema dos mosqueteiros… lembras-te, pai?
- Um por todos e todos por um! – respondeu sem hesitar.
- Mas ainda não me disseste por que motivo estás tão
pensativo – tentou novamente.
E o pai rodou várias vezes nos dedos a argola que ainda
permanecia na mesa. Presos nela, presa neles.
- Penso na resposta possível à pergunta que me
colocaste…
- Certo… e então? Gostava de conhecer a tua perspetiva.
E enquanto lhe falava de Torga e das formigas, rodou
várias vezes nos dedos a argola que ainda permanecia na mesa. Presos nela,
presa neles.
- ... Só é
tua a loucura / Onde, com lucidez, te reconheças... e te reconheçam - e continuaram atentos aos
movimentos das formigas.
Um, dois, um, dois.
As formigas aqui vão.
Um, dois, um, dois.
Certas da sua missão.
Um, dois, um, dois.
No caminho que seguimos,
Um, dois, um, dois.
é forte a nossa união.
Um, dois, um, dois.