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Pessoa ou a dor de não pensar



Foi quando ela levantou o braço, procurando uma oportunidade para intervir. Perante a anuência do professor, avançou: 

- Não lhe parece que nesta passagem poderá verificar-se também uma antítese? 

O silêncio que se fez abriu uma clareira que o colocou na berlinda. Começou por assegurar a presença da anáfora no verso de Pessoa, procurando depois trilhar o caminho da contradição que ela propunha. Como era belo aquele momento! As palavras desinstalavam. Inesperadas, abriam novas possibilidades. 

- Terás de explicar, desdobrar melhor essa possibilidade. 

E ela reafirmou a oposição, mostrando as ideias nas palavras ditas e nos gestos suaves que as revestiam. 

- Parece-me forçado, dado que implica outros versos que não consideramos neste item. 

- Mas as palavras deste verso estão intimamente ligadas às dos anteriores e considero evidente a oposição, a presença de ideias contrárias. 

Não era aquela a resposta que ele trazia preparada nos critérios de classificação, mas mostrava já abertura para a integrar. 

- Professor, estive aqui a pesquisar na net… no ChatGPT. Perguntei que recurso está presente no verso em causa e confirma-se a anáfora. Também procurei saber se há uma antítese e ele diz que não… 

Foi como uma chicotada. Inesperada, sibilante e dura.  

Ela olhou o colega que procurava daquela forma abrupta dar o caso por encerrado. Fitou depois o professor em busca de um veredicto final. 

- Bom, se o Chat diz, quem sou eu para o contrariar – gracejou, para esconder o embaraço que sentia naquele momento. – Peço apenas que não escrevam em nenhum sítio esta nova possibilidade. É só para lhe dificultar a vida e obrigá-lo a vir às nossas aulas. 

Mas já ninguém queria manter aquela disputa. Aquela dura voz, robusta e válida, era agora uma autoridade inquestionável, indiscutível.  

Assustava-o a possibilidade de nos tornarmos aquele gato que brincava na rua, bons servos das leis virtuais. Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra que é pensada. Temia pela segunda. Vassalos de um senhor cujo palácio fatalmente construímos, palavra sobre palavra, imagem sobre imagem, som sobre som. A informação, que até há pouco se organizava e guardava, ficando passivamente à espera de quem a revisitasse para a questionar, alterar, recriar, acrescentar, anda agora numa correria selvagem pelas galerias dessa desmedida fortaleza, um ignoto deo omnipotente e omnipresente. Deixamos aos seus pés a nossa inspiração, pedindo-lhe uma melodia, rogando-lhe um poema, mendigando-lhe uma pintura. E ele concede-nos esse desejo, tornando-se ainda mais forte. Deixamos aos seus pés a ciência que durante séculos esculpimos rompendo o desconhecido. 

Se Pessoa sofria, perante a consciência da efemeridade inexorável e do peso da ciência, ele sofria agora perante o alheamento cavalgante, o vazio que se instalava. Preocupava-o a dor de não pensar. 

- Passemos ao próximo item. Venham de lá essas dúvidas. Questionar é o caminho – continuou. 

- E encontrar as respostas também! – reagiu um dos alunos mais atento. 

- Certo! Sabendo que temos de ser nós a percorrer a distância dessa descoberta. Que ela não surja sem a nossa intervenção – respondeu satisfeito com aquela sintonia. 

Naquele instante sentiu-se maravilhado qual Gama frente ao estupendo gigante. E para o dominar, tal como o arremesso da funda que tombou o desmedido Golias, bastava perguntar «Quem és tu?». 

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