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A farsa de folgar, era do Senhor de MMXXIV

 


Matosinhos, 27 de fevereiro

Espantou-se, ao entrar na sala, mas logo sentiu uma certa desilusão: viu uma plateia com dezenas de filas onde restavam apenas alguns lugares esquecidos ao fundo. Seguiu para lá e acomodou-se. Fixou por momentos o palco que permanecia sem luz, adormecido. Dali conseguia ver. Colocou o casaco sobre as pernas, a mochila junto aos pés e preparou-se para o espetáculo.

Havia telemóveis que se elevavam para as efémeras selfies ou que se recolhiam no regaço para os intermináveis jogos. Tudo o que ali se passava era de imediato reduzido a frenéticos reels que se derramavam nas redes pouco sociais. Todos presentes, todos ausentes.

Repentinamente, uma onda de imparáveis palmas, ou de gritos guturais, cavernosos, que mais pareciam apoiar a entrada de jogadores em campo. A plateia havia-se tornado num palco desgovernado onde cada ator se tornara protagonista. Não havia espaço para papéis secundários, muito menos para figurantes.

Avisos... que não podiam fotografar ou videogravar, que não podiam falar. Claro que podiam rir! Expressar as suas reações. Mas havendo sempre o cuidado de não perturbar o trabalho dos atores.

Blackout.

Gritaria estridente. As lanternas dos telemóveis dançavam como pirilampos desgovernados.     Ouviram-se as tradicionais pancadas  e logo uma crescente pateada se sobrepôs. Ficou quieto, incomodado.

Esperou.

Paulatinamente, a luz foi crescendo no palco que se abriu para acolher a farsa que o Mestre Gil esculpira e que o tempo ainda não conseguiu desmoronar. Palavras reencarnadas, tecidas em cada gesto, em cada movimento. Palavras plenas de luz e cor! 

E as seculares palavras, carregadas de tempo, talvez cansadas dos tempos, invadiam a plateia, desnudando as fraquezas escondidas.  O riso era ali uma espécie de anestesia que escondia a dor que certamente viria algum tempo depois, apanhando um a um. Afinal, passados quinhentos e um anos, o riso ainda nos castiga, rimos das fragilidades, que primeiro sempre vemos nos outros!

Olhou à sua volta e ficou perturbado. Seriam eles também panela sem asa, descontentes por permanecerem encerrados em casa dos pais? E queriam eles buscar maneira D’algum outro aviamento? Ocorreu-lhe que estariam presos por vontade e não sabia bem até quando. Que escolhas tolhiam a sua liberdade, a sua identidade?  Que Pêro Marques, ingénuo e simplório,  se acercava da parreira que assinalava a casa de cada um? Que Brás da Mata os cercava com a melodiosa voz de sereia sedutora? Em quem se tornou Leonor Vaz, senhora do aviamento? E as carochinhas, que cuidavam o seu perfil nas janelas ascendestes e descendentes, queriam elas um bom marido, Rico, honrado e conhecido? E que hábito vestia a sedução? Que ermitões serviam por aí o deus Cupido?

                - Pois assi se fazem as cousas.

                - Gostou? – quis saber o rapaz que não despregava os olhos da atriz que voltava ao palco para os merecidos agradecimentos.

                - Eu também gostei! Quando li a peça, não pensei que fosse tão engraçada- reforçou depois de perceber o aceno afirmativo.

                Seguiram-se os piropos assobiados.

    Por fim, a saída, mais silenciosa do que a entrada, facto que era um excelente indício.

                As seculares palavras continuavam o seu caminho na era do Senhor de MMXXIV.


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