Matosinhos, 27 de fevereiro
Espantou-se, ao entrar na sala, mas logo sentiu uma
certa desilusão: viu uma plateia com dezenas de filas onde restavam apenas
alguns lugares esquecidos ao fundo. Seguiu para lá e acomodou-se. Fixou por
momentos o palco que permanecia sem luz, adormecido. Dali conseguia ver.
Colocou o casaco sobre as pernas, a mochila junto aos pés e preparou-se para o
espetáculo.
Havia telemóveis que se elevavam para as efémeras selfies
ou que se recolhiam no regaço para os intermináveis jogos. Tudo o que ali
se passava era de imediato reduzido a frenéticos reels que se derramavam
nas redes pouco sociais. Todos presentes, todos ausentes.
Repentinamente, uma onda de imparáveis palmas, ou de
gritos guturais, cavernosos, que mais pareciam apoiar a entrada de jogadores em
campo. A plateia havia-se tornado num palco desgovernado onde cada ator se
tornara protagonista. Não havia espaço para papéis secundários, muito menos
para figurantes.
Avisos... que não podiam fotografar ou videogravar,
que não podiam falar. Claro que podiam rir! Expressar as suas reações. Mas
havendo sempre o cuidado de não perturbar o trabalho dos atores.
Blackout.
Gritaria estridente. As lanternas dos telemóveis
dançavam como pirilampos desgovernados. Ouviram-se
as tradicionais pancadas e logo uma
crescente pateada se sobrepôs. Ficou quieto, incomodado.
Esperou.
Paulatinamente, a luz foi crescendo no palco que se
abriu para acolher a farsa que o Mestre Gil esculpira e que o tempo ainda não
conseguiu desmoronar. Palavras reencarnadas, tecidas em cada gesto, em cada
movimento. Palavras plenas de luz e cor!
E as seculares palavras, carregadas de tempo, talvez
cansadas dos tempos, invadiam a plateia, desnudando as fraquezas escondidas. O riso era ali uma espécie
de anestesia que escondia a dor que certamente viria algum tempo depois,
apanhando um a um. Afinal, passados quinhentos e um anos, o riso ainda nos
castiga, rimos das fragilidades, que primeiro sempre vemos nos outros!
Olhou à sua volta e ficou perturbado. Seriam eles também
panela sem asa, descontentes por permanecerem encerrados em casa dos
pais? E queriam eles buscar maneira D’algum outro aviamento? Ocorreu-lhe
que estariam presos por vontade e não sabia bem até quando. Que escolhas
tolhiam a sua liberdade, a sua identidade?
Que Pêro Marques, ingénuo e simplório, se acercava da parreira que assinalava a casa
de cada um? Que Brás da Mata os cercava com a melodiosa voz de sereia sedutora?
Em quem se tornou Leonor Vaz, senhora do aviamento? E as carochinhas, que cuidavam o seu perfil nas janelas ascendestes e descendentes, queriam elas um bom
marido, Rico, honrado e conhecido? E que hábito vestia a sedução? Que
ermitões serviam por aí o deus Cupido?
- Pois assi se
fazem as cousas.
- Gostou? – quis
saber o rapaz que não despregava os olhos da atriz que voltava ao palco para os
merecidos agradecimentos.
- Eu também gostei! Quando
li a peça, não pensei que fosse tão engraçada- reforçou depois de perceber o
aceno afirmativo.
Seguiram-se os piropos
assobiados.
Por fim, a saída, mais silenciosa do que a entrada, facto
que era um excelente indício.
As seculares
palavras continuavam o seu caminho na era do Senhor de MMXXIV.