Caminhou em direção ao rapaz, enquanto se lembrava daquela imagem que durante vários dias se tinha apoderado do seu pensamento. Sempre que havia um intervalo, uma nesga de espaço e de tempo, era para aí que teimosamente ele se deslocava.
Uma secretária, um funcionário cinzento, sentado, encerrado nos seus gestos ensaiados e repetidos, agarrado às palavras cansadas que articulava morosamente, palavras engaço, relíquia do que foram. À sua frente, alinhados, animais vários. Orgulhosamente chegados dos três elementos e assim dotados para as circunstâncias onde se formataram. Ouviam, parece que ouviam, a apresentação da tarefa. Em cada rosto, uma amálgama de alegria, espanto e desilusão. Assim, por esta ordem… Parece que ouviam. O estimado senhor, do alto da sua calvície, não dava conta de que os animais à sua frente dispostos não entendiam os sons, não os descodificavam, eram os significantes desprovidos de significado. Terá sido por isso que nenhum deles subiu à robusta árvore que se elevava nas suas costas.
O rapaz aguardava, já um pouco incomodado pelo silêncio incomum e deixava fugir um sorriso discreto, quase escondido, desafiador, que obrigava o seu rosto a uma certa curvatura de desdém. Aproximou-se um pouco mais e olhou-o serenamente. Percebeu aquela primeira investida e desviou-se dela, fixando o caderno esquecido na mesa, intocado quase, imaculado não, manchado, marcas de um pensamento distante, nuvens de riscos, fios curtos que não alcançavam a saída do labirinto onde se encerrara.
Novamente a ilustração. E se a tarefa fosse apenas para aqueles que foram criados no mesmo elemento? E se fosse apenas para aqueles que desenvolveram capacidade para trepar àquela vetusta árvore, carregada de tempo, senhora do passado que abriga em cada ramo, senhora do futuro que guarda em cada fruto que há de vir?
Estando já ao lado do moço, colocou-lhe a mão no ombro. Mas logo a retirou. Talvez não fosse uma acomodação bem-vinda. Talvez não constasse da listagem. Porque não subia ele? Porque não queria alcançar o horizonte que só os ramos lhe permitiam? Porque não ousava conhecer os frutos que só a subida lhe consentia?
- Já acabaste o exercício?
Silêncio. O mesmo olhar.
- Precisas de ajuda?
Silêncio. O olhar tornou-se ainda mais duro.
Não subia. Não queria subir.
Sendo ambos do mesmo elemento, o gaiato compreendia a mensagem, descodificava com agudeza as palavras que lhe dirigia. Mas não queria.
E de novo a ilustração. E se colocássemos uma escada? E se instalássemos um elevador? E se alguém, já senhor das alturas, lhe mostrasse as vantagens da subida?
Não subia, não queria subir.
E se cortássemos a árvore?
Fim do problema. Ficaria o rapaz finalmente acomodado e aprovado.
- Estou certo de que um dia irás tirar partido de toda a tecnologia que tens ao teu dispor. Estou certo de que porás a render todos esses dons, essa dádiva que é a tua existência, essa vida que nunca será só tua! São muitos os que aguardam o teu contributo.
Silêncio. Desta vez o sorriso desceu da altiva torre onde se mantinha encerrado.
Afastou-se então para a sua secretária. Talvez tivesse rompido levemente aquela barreira. Ainda revisitou a gravura e vislumbrou por momentos uma montanha que se escondia atrás da árvore. Não resistiu:
- Afinal não queremos que a montanha vá parir um rato!
O rapaz franziu a testa. Seria bom sinal? Pelo sim pelo não, atualizou e acomodou a sentença:
- Não queremos que a montanha dê à luz um rato!