- Acorda, Mateus! Temos um peru no telhado! – alertou a Teresa, enquanto fazia deslizar os cortinados, deixando entrar repentinamente no quarto a luz do dia.
- Fecha isso! – protestou o
Mateus, escondendo a cabeça debaixo do lençol.
- A sério! Está ali um peru, no
telhado do alpendre – reforçou a Clara.
- Vão para o vosso quarto, de lá
também se vê bem!
- Já lá estivemos. Agora o peru
está mesmo aqui em frente à tua janela. Anda ver – insistiu a Teresa.
A ave caminhava com alguma
dificuldade, dada a inclinação das telhas e a chuva que inesperadamente chegara
para interromper o verão. Mantinha o pescoço sempre muito direito, qual
periscópio atento a todos os movimentos e a todos os sons.
- Como é que ela veio aqui
parar?! É um dos perus do avô e deve ter voado por cima da vedação – explicou o
Mateus, que não resistiu ao inaudito acontecimento.
- Olha o pai lá em baixo no meio
do jardim! - apontou a Clara. – Traz uma
vara na mão. O que é que ele está a fazer!? De chinelos, calções e com aquele
casacão que costuma usar no inverno!?
- Simples, está a tentar apanhar
o peru – respondeu o Mateus.
- O pai também parece um peru à
chuva! – rui-se a Teresa.
Daí a pouco, o animal estudou a
descida em direção ao caminho que passava junto à casa, preparou o salto
inicial e abriu as asas. Num ápice, aterrou e avançou em direção ao galinheiro,
atraído pelo grugrulejar dos irmãos e dos pais que também o procuravam.
- Então, pai, missão cumprida!
Pareces um explorador… os chinelos é que não combinam muito bem.
- O mais difícil foi retirá-lo
do terreno do vizinho para onde tinha voado – respondeu sem valorizar a piada
do rapaz. – Chama as tuas irmãs para tomarem o pequeno-almoço.
- Não estava nada à espera
destas nuvens carregadas – lamentou-se o Mateus, depois de regressar para junto
do pai.
- Nos tempos em que vivemos, o
mais difícil é viver sem as nuvens.
- Por favor, pai, já estiveste
melhor, essa piada é muito fraquinha!
- Mas eu não quis fazer uma
piada!
- Não negues, estavas a tentar
criticar-me.
- Nada disso, tu agora já não és
tão distraído, lentamente, tens descido à terra.
- Vês, agora estás a ser
irónico…
- Olhe que não, olhe que não! –
reagiu o pai, rindo das próprias palavras. - Tens procurado falar cada vez mais
connosco sobre os mais variados assuntos o que prova que tens abandonado as
nuvens onde por vezes te refugias, esse espaço reservado onde só tu entras – continuou de forma mais séria.
- Percebi, mas então de que
falas quando dizes que hoje é difícil viver sem nuvens.
- Tenta dizer-me tu.
- Se calhar, o pai quer dizer
que as nuvens trazem a chuva que é tão importante para combater a seca que
afeta o nosso país – interveio a Clara que, entretanto, se sentara também à
mesa.
O Mateus fixou o rosto da irmã,
fazendo um trejeito que pareceu de espanto.
- Credo! Não é preciso tanto, só
disse o que me parece óbvio.
-
Estava a ser irónico, ó génio!
- Às
vezes, também é bom andar nas nuvens – gracejou a Inês, mostrando outra dimensão
agarrada às nuvens, esta certamente menos carregada.
A
Teresa desenhou de imediato um coração com as mãos, desencadeando uma
gargalhada geral, pois tinha sido muito perspicaz.
O pai
continuou a fixar o filho, aguardando pela resposta.
- Não
sei por onde queres ir quando falas das nuvens.
- Falo
de realidades que me preocupam.
E
continuou para lhes mostrar que as nuvens guardam água que muito desejamos em
tempo de seca. E quis saber o que acontece à água, dádiva das nuvens, quando o
terreno é muito inclinado ou muito duro, impermeável. Respondeu a Clara:
-
Nesses casos, corre para longe ou fica concentrada, fazendo um lago.
O pai
acenou afirmativamente, perguntando:
- E o
que acontece à terra tocada pela chuva?
Não precisou
de palavras. Os olhares bastavam. A terra continuava seca, árida, estéril. A
água não percorria as suas entranhas, não se acumulava nos lagos profundos, não
circulava pelos incontáveis caminhos escondidos, não ascendia depois à mais
bela flor tocada pelo Sol. E a água retornava às nuvens e aguardava, sedenta de
chão para se erguer em forma de vida.
- Boa,
pai! Mais uma das tuas tiradas poéticas sobre a importância vital da água! –
brincou o Mateus.
- Não
estou a falar de água – contrariou.
Não
estava. E apontou para os dispositivos que, como as nuvens, pairam ao nosso
lado. Indicou depois algumas lombadas alinhadas na estante do nicho ao fundo da
sala… Garantiu que aí se armazena uma chuva especial que é preciso acolher, com
tempo, com silêncio, com resistência. E depois deixar que circule, se
transforme e nos transforme, qual cedro desmedido que não pode aspirar ao mais
alto sem o chão que o alimenta.
-
Conhecimento!?
- Claro! Não deixes que as nuvens
se afastem, tornando árido o terreno, desconhecedor de água, sedento ignorante.