O mistério das Remolhas
Teatro
Jaime
Ribeiro
Apresentação
Esta peça inspira-se na narrativa “O mistério dos espíritos no pomar” de Gonçalo Pinto vencedora do primeiro
prémio, na modalidade conto III ciclo do ensino básico, do I Concurso Conhecer Milheirós de Poiares em 2014.
Há dias, ao revisitar a página que acolhe
a informação sobre este concurso, procurando preparar o próximo, reavivando,
assim, um projeto que a malfadada pandemia também obrigou a um interregno, reli
a referida história que subitamente me desafiou a recriar a sua intriga.
Surgiram então novos acontecimentos, novas
personagens que falam do seu tempo e dos seus lugares, das dificuldades que as
tornavam mais fortes, das alegrias simples e fundadoras de amizades
inquebráveis. Vozes que, de forma humilde, divertida e heroica, poderão
responder a tantas ânsias que os tempos de hoje nos provocam.
Milheirós de Poiares, julho de 2023
Personagens
Luís
Joaquim
Francisco
Zé
Quim
Dois Polícias (Guardas)
Rosa
Luísa
Lina
Josefa
Várias crianças (Zezinho, Tó, Amália,
Nelinho, Zeza)
Beto
Manuel
David
Pe. Alcino
Manuel das Remolhas
Ato único
Julho, meados da década de sessenta,
Milheirós de Poiares.
Café Central. Final de tarde. Joga-se às
cartas, ao dominó e às damas. Música no rádio, Simone de Oliveira, Sol de
Inverno. Baixa o volume no início da conversa.
Luís - (Entra.) Boa tarde! (Encosta-se ao balcão, tira a
boina.) Ó senhor Joaquim, sirva-me aí meio-quartilho de tinto, se faz
favor. (Bebe. Permanece em silêncio.)
Francisco - Ó Luís, anda daí jogar. Junta-te a
nós. Estás a pensar na morte da bezerra ou quê!?
Zé
- Jogas comigo contra o Francisco e o Quim... uma suecada e ficas logo outro.
Luís - (Aproxima-se.) Posso ser eu a baralhar?
Quim – (Para o Luís.) Podes... foste trabalhar hoje? Pareces
preocupado, homem!
Luís - (Enquanto baralha as cartas.) Ando cá preocupado com
umas coisas... até nem tenho dormido direito.
Francisco – (Baixando a voz, depois de
inspecionar a sala.) Foste chamado para a guerra?
Luís - Ainda não. Mas não deve faltar muito. Por este andar, vamos
todos para o Ultramar. Eles querem lá saber de nós e das nossas famílias.
Quim - (Imitando, quase num sussurro.) “Para Angola,
rapidamente e em força. Para Angola, rapidamente e em força.”
Luís - A mim não me apanham.
Entre a instrução e as fileiras, vão comer-nos dois anos de vida... alguns
ficam lá quatro anos!
Francisco – Fala mais baixo, não sabemos quem nos
ouve. Mas então é isso que te preocupa?
Luís – Também, mas não é só a mim: qualquer um está sujeito a ser
incorporado de um dia para o outro.
Quim – O melhor é trabalharmos e bebermos uns copos para esquecer. (Pausa.)
Mas precisas de ajuda? É coisa de dinheiro?
Luís - (Começando a distribuir as cartas.) Não. Graças a
Deus, está tudo bem na fábrica. O patrão gosta do meu trabalho. (Pausa.)
Ando é cismado com outra coisa. Nem ides acreditar. Até parece bruxaria. (Organiza
cada um as cartas que recebeu.) Sei lá... parecem coisas do Diabo!
Quim - (Surpreendido.) Estás maluco, rapaz?! Nunca deste
valor a superstições. Fosse outro o tempo e ainda ias parar à fogueira.
Luís - Não brinques. A verdade é que, quando faço o turno das quatro
à meia-noite, venho a pé para casa, ou de bicicleta, quando não chove. Passo o Seixal
e depois venho ali pelas Remolhas. (Hesita.) Eu tenho dito à Josefa que
preciso de uma motorizada, mas ela põe-se logo a disparatar, que morro numa
curva qualquer, que no futuro não serve para levar a canalha...
Francisco – Mas tu ainda não tens filhos!
Luís - (Sorrindo de forma comprometida.) Mas vamos ter um dia!
Zé
- (Dando-lhe uma palmada nas costas.) Eu sabia! Tu não és homem para
faltar aos treinos!
Quim - (Impaciente.) Ó Zé, está calado e deixa o homem falar.
Luís - E diz que é muito caro, é dinheiro mal gasto, que prefere um
carrito.
Quim - (Interrompendo.) Tu estavas a falar de bruxaria.
Luís – Sim, mas são coisas minhas... quando venho da fábrica, como
vos disse, e passo ali, nas Remolhas, pelo caminho junto ao campo de milho do
senhor Manuel das Remolhas, pouco depois da meia-noite, tenho ouvido uns
barulhos estranhos. Na primeira vez, ainda parei para ver melhor, ainda
perguntei quem era, nada, só o restolho, era como se alguém se arrastasse,
estivesse à espera.
Zé
- És bem tolo! Metias-te pelo campo adentro. (Travesso.) Aquilo há de
ser gente que anda a ver se a maçaroca já está madura ou se a bandeira já está
alta. Se fosse eu, ia logo ver se era preciso mais gente para trabalhar.
Luís - Não brinques, Zé. Às tantas é para aí algum Zé do Telhado
tresmalhado. Tenho mais receio no fim do mês, quando recebo... pode ser algum
malandro para me limpar os bolsos.
Francisco – Mas que ruídos ouves tu ao certo?
Luís - (Depois de pensar um pouco.) Sei lá eu. Parecem-me
passos sobre palha seca. Às vezes, o assobio do vento, outras, vozes que dizem
segredos, parecem almas do outro mundo...
Cena II
(Entra um guarda da PSP. Dirige-se ao
balcão. Francisco faz sinal e todos guardam as cartas imediata e
discretamente.)
Guarda - Boa tarde! Senhor Joaquim, não é assim? (Mostra um papel
enquanto varre a sala com o olhar.) Conhece este homem? (Aceno negativo.)
Já o viu neste estabelecimento?
Joaquim – Nunca o vi por estas bandas, senhor guarda.
Guarda - E estes homens são daqui, desta freguesia de Milheirós de
Poiares?
Joaquim – Todos desta terra. E todos ganham a vida em São João da
Madeira. Bons rapazes. Passam por aqui ao final da tarde depois do trabalho,
bebem um copito, falam de futebol, do nosso Benfica, para depois voltarem para
casa, para a família, e cuidar do campo e dos animais.
Guarda – Muito bem. (Fixando os clientes.) O café não é boa
escola. (Mostra a folha com o retrato e o nome. Acenos negativos).
Alguma informação sobre este indivíduo deve ser de imediato comunicada ao posto
de São João. O Senhor Joaquim fará o favor de disponibilizar o telefone aqui do
café. (Pausa. Para o senhor Joaquim, baixo, intimidante.) E do seu filho
já tem alguma notícia? (Aceno negativo de Joaquim que fixa o olhar no chão.)
Estamos atentos. Passe bem. (Sai.)
Cena III
Zé - (Depois de seguir o guarda discretamente até à porta.) Estavam mais três no carro!
Luís - (Preocupado.) Eu não vos dizia. Não tarda e vai tudo
para a guerra.
Quim – Devem andar atrás de algum refratário ou desertor. Estes são
do posto de São João, que abriu há três ou quatro anos, (Com ironia.)
para ficarmos mais protegidos.
Francisco – Foi por pouco. Se nos apanhava na
jogatina, ainda íamos todos prestar declarações. Livrem-se de falar de
política. Para eles, juntos já fazemos um comício, somos um ajuntamento, uma
multidão sem autorização que é preciso dispersar à força.
Luís - (Levanta-se.) Tenho de ir, preciso de regar, senão
seca tudo. Amanhã passo por aqui.
Francisco - Estás a fazer o turno da manhã?
Luís - Sim. Até amanhã. (Sai.)
Cena IV
Francisco - (Depois de confirmar a saída de Luís. Baixo para que o Joaquim não perceba. Este procura ouvir discretamente.) Oiçam lá, e se nós nos metêssemos nos campos de milho das Remolhas?
Zé
- Isso é que era, ó Chico, vamos aos pêssegos do senhor Manuel e esperamos lá
por ele. Esta semana faz o turno da manhã, para a semana o da tarde... daqui
por quinze dias está outra vez no turno da noite. Vai apanhar o susto da vida
dele! Vai ser de rir e comer, comer e rir!
Francisco - Não pode ser assim. Ainda morre de
cagaço. É melhor fazermos de outra maneira. Amanhã, quando o Luís chegar aqui
ao café depois da ceia, (Para o Zé.) vais falar com ele e combinam todos
ir gamar pêssegos ao pomar do senhor Manuel. Se ele perguntar por mim, ou
desconfiar de alguma coisa, ó Quim, tu inventas uma boa desculpa, (sugerindo)
que fiquei a dar um jeito na motorizada, a sachar o milho.
Zé
- (Para o Francisco.) E o que vais fazer?
Francisco - Só preciso que subam ao pessegueiro
por volta das onze e meia. Quando estiverem encarrapitados, eu apareço no meio
do milho coberto com um lençol branco e abano-me como se fosse um espírito, uma
alma do outro mundo.
Joaquim - (Aproxima-se para apanhar os copos vazios.) Nem quero
saber o que para aí vai. Coisa boa não será. Vejam lá o que vão fazer, eles
andam à caça. Não se metam na política, ouviram? Nem quero o meu
estabelecimento ligado a essas coisas. Ainda me fecham o tasco. Agora toca a
andar! Vão lá tratar do gado e da rega. Depois da janta já não abro, só amanhã
à tarde.
Quim - Então, senhor Joaquim, algum problema?
Joaquim – A mulher anda fraca. Umas dores nas costas que nem se mexe.
Vou levá-la ao hospital. Bem falta nos faz o doutor Crispim aqui na terra!
Francisco – (Levanta-se.) Eu pago a rodada.
Aqui tem. E as melhoras para a senhora Rosa. (Despedem-se.) Até amanhã. (Saem
todos exceto o dono do café. A música do rádio sobe de volume, Sol de Inverno
de Simone de Oliveira. Joaquim arruma a sala, desliga o rádio. Sai. Apagam-se
as luzes.)
Cena V
Dia seguinte, fim de tarde, luzes.
Joaquim entra no café. Liga o rádio. Ouve-se Help dos Beatles. Tira a boina,
senta-se, desanimado. Levanta-se novamente, certifica-se de que não está
ninguém prestes a entrar. Remexe atrás do balcão. Traz depois um livro -
Felizmente há luar! Olha-o, folheia-o como quem o recorda, lê a primeira fala.
Joaquim - (Pausadamente.) “Que posso eu fazer? Sim: que posso eu
fazer?” Tens razão, meu caro Luís. Melhor será dizer, que podemos nós
fazer? A ti censuram-te as palavras, a
mim farejam-me a loja a cada passo. (Pausa.) Tenho pena destes rapazes.
Não tarda, mandam-nos a todos para o Ultramar, interrompem-lhes os sonhos...
ficam-lhes com a vida ou devolvem-nos estropiados, doentes para toda a vida! (Pausa.)
E agora a minha Rosa, presa numa cama no hospital... e eu aqui tão longe,
tão impotente. Não posso fechar o meu ganha-pão para estar com ela... e o nosso
Abel passou-se para França... e para aqui estou... (Mais confiante.) O
que me vale é a Luísa e o meu netinho, o Antoninho! Meu Deus, Meu Deus! (Como quem procura a
esperança. Levanta-se.) Amanhã será um dia de Sol! (Repara no título do
livro, antes de o esconder no balcão.) Por agora, felizmente há Luar! A
noite que nos deram é a noite que nos protege.
Cena VI
Luís - (Entra pouco depois. Senta-se ao balcão.) Boa tarde, senhor Joaquim! Então como vai a senhora sua esposa? Contaram-me há pouco...
Joaquim - Graças a Deus que temos no Santo António um enfermeiro aqui
da nossa terra. Já falei com ele esta manhã. Diz que a minha mulher está a
reagir bem aos tratamentos. E que muito provavelmente terá de ser operada. Já
lhe fiz chegar umas maçãs madurinhas. Se Deus quiser, amanhã vou lá vê-la.
(Pausa.) Então e tu, como tens passado?
Luís - Ainda não decidi... (Interrompe o que diz com a chegada do
Quim e do Zé.)
Zé
- (Entra acompanhado pelo Quim.) Ó Luís, olha que o senhor Joaquim ainda
não tem licença para confessar. Para isso, só o senhor abade e mesmo a esse não
podes dizer tudo. Ainda por cima agora que treinas todos os dias!
Joaquim – Esses pecados não o condenam, Zé! Até dizem que são o paraíso
na terra.
Quim – Bem visto, senhor Joaquim. Isso é que é falar. (Riem.)
É o costume aqui para a rapaziada, hoje pago eu. E o senhor Joaquim
acompanha-nos que lhe vejo no rosto uma certa tristeza. Tenha calma que a
senhora Rosa vai voltar outra. Estás a ver, Luís? Tens de ir com calma, senão a
tua futura patroa também vai sofrer das costas. (Riem, brindam e bebem.
Sentam-se depois numa das mesas.)
Zé
- Ó Luís, senta-te aqui connosco. (Pausa.) Estive aqui a falar com o
Quim e com o Beto que ainda está lá fora... o senhor Manuel ali das Remolhas
tem lá uns pêssegos madurinhos, docinhos, uma maravilha, e dizem que o homem
quando adormece ninguém o acorda, parece uma pedra. E se nós lá fôssemos esta
noite? Com este calor até caíam bem. (Pausa.) Que dizes? Vens
connosco? Vamos depois do teatro.
Luís - (Sem convicção.) Pode ser.
Quim- Pode ser?! Tu não andas bem, amigo.
Zé
- Nada disso, ó Quim, ele deve andar é muito cansado... por causa dos treinos
diários. (Riem, continuam a falar. Música do rádio. Apagam-se as luzes.
Silêncio).
Cena VII
Também ao fim da tarde. Fonte do Rato.
Luzes. Entram Josefa e Luísa. Esta com
um cântaro para encher, Josefa com um açafate de legumes, que pousa para
descansar. Com uma folha de couve faz um copo. Bebe. Logo depois Lina que
regressa de São João.
Luísa - Ó Josefa, bebe à vontade. Tenho tempo.
Lina – Boa tarde! Ui! Que calor! Vir a esta hora de São João não se
aguenta!
Josefa – Obrigado, Luisinha. (Satisfeita.) Água boa! Bebe
também, Lina. Isto está uma torreira! É preciso regar todos os dias estas
novidades, senão murcha tudo e adeus a este dinheirinho para equilibrar as
contas. Olhem lá, sempre é verdade que podem chamar os nossos rapazes para a
guerra no Ultramar?
Lina - (Certifica-se de que ninguém as ouve. Baixo.) O meu Zé
está sempre a dizer-me que isso não vai acontecer, mas eu não acredito. (Para
Luísa.) Então e tu, como tens passado sem o teu Abel? Já mandou notícias?
Luísa - (Com cuidado.) Fala baixo! Ainda nos ouvem! O Pe.
Alcino ficou de me dizer alguma coisa. Mas tenho andado com o coração nas mãos.
Ponho-me a imaginar coisas... que o apanham na fronteira e que o mandam para o
Tarrafal ou para combater no mato em Angola... e que que já não volta de lá
vivo... depois o Antoninho que não para de perguntar pelo pai: quando chega,
quando volta do trabalho... (Lina e Josefa sentam-se com ela numa pedra
junto da fonte. Seguram-lhe as mãos para a sossegar.) Eu sei lá onde tem dormido, se tem comido...
é tudo uma escuridão. E se esses homens que o vão passar de salto lhe ficam com
o dinheiro, com o nosso dinheiro quase todo, e o abandonam no meio de uma serra
qualquer, longe de tudo? Nem quero imaginar... nem quero saber dos catorze
contos! Quero é o meu homem são e salvo! Ai, Nossa Senhora de Fátima! Não nos
faltes nesta hora!
Josefa – Rezemos todas, porque eu também bem preciso. É que o Luís
anda muito estranho. (Para Luísa.) O teu homem está longe, por terras de
França, com a graça de Deus, há de já ter passado a Ponte de Santiago, o meu anda
com a cabeça sei lá eu por onde, nunca o vi tão calado, tão pensativo. Já lhe
disse que, se for para a guerra, há de voltar com a ajuda de Deus Nosso Senhor.
Também receio que queira passar-se para França ou para a Alemanha... e não
posso ficar sozinha neste estado... (Afaga a barriga.)
Lina – (Com alento.) Tu não estás só, rapariga! Nós estamos
cá para o que der e vier! (Abraçam-se.) Agora vamos, tenho de tratar da
ceia e ver se a canalha já fez os deveres. E amanhã devíamos ir falar com o Pe.
Alcino. Pode ser que já tenha alguma notícia do Abel... ouvi dizer que hoje foi
ao Porto e quem sabe se não encontrou um desses viajantes que vem da fronteira.
E tu pedes-lhe conselho para o teu Luís. Vá, vai tudo correr bem. (Levantam-se.
Ajudam-se com o cântaro e com o açafate). Até amanhã.
Luísa - Até amanhã. Espero-vos no fim da missa das sete.
Josefa – Isso. Lá estarei.
Cantam Estranha forma de vida de Amália
Rodrigues, enquanto saem por diferentes direções. Apagam-se as luzes.
Cena VIII
Ouve-se Ele e ela de Madalena Iglésias.
Luzes. Na rua, junto às casas onde habitam, crianças brincam ao pião, saltam à
corda, jogam ao berlinde, ao esconde-esconde, ao lencinho, ao um-dois-três-batatinha-frita,
à macaca, correm com um aro, trazem fisgas, saltam ao eixo e à corda. Também
jogam com uma bola de trapos.
Zezinho - (No proscénio, segura na bola com que dá toques e
aproxima-se de Antoninho que enrola um pião.) Então, Tó, o teu pai já
voltou para casa? (Breve silêncio.) O gato comeu-te a língua? Se calhar,
fugiu com medo da guerra... é o que se diz por aí. O teu pai é um medricas, o
teu pai é um medricas. (Outras crianças juntam-se em coro.) O teu pai é
um medricas, o teu pai é um medricas!
Antoninho – O meu pai pode mais do que o teu, tem
muito mais força! E não tem medo de nada.
Amália - E que interessa ter muita força se ninguém sabe dele? Se não
está cá para te defender?
Antoninho – A minha mãe é que sabe! E ela diz que
ele foi trabalhar uns dias para Lisboa e que em breve estará de volta e que vai
fazer-me um carrinho de rolamentos. Vou pintá-lo todo de vermelho! Vou
ganhar-vos a todos na descida até à igreja. E vai trazer-me umas chuteiras
novinhas!
Nelinho – (Procura apoiar Antoninho.) O meu pai também me vai
fazer um. Ou se calhar uma mota de pau.... e depois descemos juntos pela
estrada.
Zezinho – Ao menos os nossos pais não fugiram com medo da guerra. Andaram
no mato e não tiveram medo daquelas cobras gigantes que por lá andam.
Nelinho – Cala-te! Eu sei que o pai do Tó não tem medo! E, se for
chamado para ir para a guerra, salta logo para a primeira fila! E vê lá se
queres que conte à tua mãe o que andas a dizer aqui ao Tó. E também digo à
professora que andas a copiar os deveres de casa e a roubar a merenda dos
outros. E digo ao Pe. Alcino que ainda não sabes o padre-nosso.
Zezinho - Até quero ver. Experimenta e levas um murro.
Zeza - (Apaziguadora.) Tudo quieto. Aqui não há zaragatas.
Está na hora do nosso festival da canção. Eu e a Amália cantamos e vós tocais.
Todos nos lugares. Tó, apresenta-nos.
Antoninho - (Simula falar para um microfone).
Boa tarde, senhores e senhoras. E agora para alegria de todos, a canção Ele e
Ela, vencedora do nosso grandioso festival da canção. Um forte aplauso, por
favor! (Cantam. Quase no fim da música, em voz off, ouvem-se as mães a
chamar.)
Voz off - Zezinho, ó Zezinho, anda cear, filho!
Voz off - Ó Zeza, eu já te chamei, filha, não te demores, que o pai não
gosta de esperar! E traz o Nelinho contigo.
Voz off - Amália! Tu mexe-me essas pernas e caminha já para casa! Tu
por acaso ainda estás com a roupa da escola?! Ai, se a rompeste, nem sabes o
que te faço, rapariga...
Sai cada um, apressado e intimidado com o
tom de voz e com as palavras que interrompem a brincadeira. Antoninho fica só.
Cena IX
Antoninho - (Enrola o baraço no pião. Desanimado.) O meu pai anda lá por longe... sempre que pergunto por ele, a minha mãe começa a chorar. Diz-me para não ter medo e que não tarda estará de volta... só não percebo é porque começa a chorar. (Pausa.) E a minha avó Rosa que foi para o hospital?! O meu avô Joaquim anda tão triste que nem lhe apetece abrir o café. Porque que é que os grandes têm tantos problemas?... (Pausa.) Queria tanto que o meu pai estivesse aqui, para jogar à bola comigo, para mostrar ao Zé que não tem medo de nada, nem da guerra! Ficava ele no café para o avô Joaquim estar mais tempo com a avó Rosa... e a minha mãe chorava menos um bocadinho.
Cena X
Luísa - (Entra à procura do filho.) Toninho! Então não me ouves chamar, filho. Estava a ficar preocupada. Até perguntei à Zeza quando passou à porta da nossa casa. E então o Nelinho disse-me que ficaste por aqui. Que tens? Já te disse para não andares a pensar em coisas que não são para a tua idade. Em breve, ficará tudo bem outra vez! Anda, vamos para casa. Precisas de descansar. Amanhã, se calhar bem, vamos com o avô Joaquim ver a avó Rosa ao hospital. (Saem.)
Cena XI
Noite. Salão paroquial. Reunião do grupo de teatro. Sentados em semicírculo.
Zé
- Fazemos como combinado. Ninguém se descose, certo?! A esta hora já o Chico
está a preparar o cenário e o figurino! (Muda de assunto.) E agora o
teatro. Sempre vamos preparar uma peça para o Natal?
Quim – Eu alinho! Por mim, o teatro não morre! Desde o início deste
século que a nossa terra se distingue nas artes do palco.
Beto – Precisamos é de escolher uma boa peça e garantir que não nos
venham censurar o trabalho.
Manuel – (Sonhador.) Tem de ser um verdadeiro espetáculo: em
palco a verdadeira sintonia entre o canto, a música, as palavras, a luz, o
cenário, o guarda-roupa e, claro, as palavras! Fundamentais as palavras!
Palavras agarradas aos mais nobres sentimentos e às ações extraordinárias!
David – (Também empolgado.) Sem dúvida! A vida no palco, para
mudar a nossa vida! E, se possível, as palavras de mãos dadas com o riso. Por
ele, troçamos de nós próprios, emendamos os nossos costumes!
Manuel – Tal como propunha um dos fundadores do nosso teatro, meu caro
David!
David – Justamente! Gil Vicente fê-lo como ninguém, de forma ímpar!
Zé
- Mais calma, meus senhores! Ainda nos falta a peça!
Quim – O Manuel é que podia estudar o caso e encontrar a que melhor
se adequa ao nosso grupo...
Beto – Uma que não nos deixe ficar mal, a ver se deixam de nos
chamar velhos! E tento nas palavras, meus amigos! As paredes têm ouvidos… e nas
plateias há outros ainda mais atentos que no final podem vir pedir-nos
autógrafos…
Zé
- Ó Beto, não agoires! Esta terra sempre teve gente que pensa, gente distinta e
interventiva! Não podemos dizer o que pensamos? Não há problema, revestimos as
palavras, sugerimos e alcançamos as mais belas metáforas. Por elas nos
libertamos, nada nos corta o pensamento! (Pausa.) E dizes que nos chamam
velhos? Não tenho medo dessas críticas! Já olhaste bem para nós?! Energia não
nos falta! Em cima do palco, pomos toda a gente a chorar e a rir.
Manuel – Calma, Zé, ainda não estás no palco! Então é para avançar… muito
bem, tenho já uma ideia. Vou dar-lhe forma e para a semana já vos digo alguma
coisa.
Cena XII
Luís chega e senta-se na cadeira disponível.
Zé
- Isto são horas!? Estamos quase a acabar! (Luís esboça um sorriso.)
Isso mesmo, Luís! Estava a meter-me contigo. Qualquer hora é boa para esse
nobre serviço que nos renova. Mas vê lá se no dia da peça vens com mais fôlego.
Fala com a Josefa para não te dar tanto trabalho!
Quim - Já decidimos que aqui os velhinhos vão preparar uma peça para
apresentar no Natal! E contamos com a tua voz apurada!
Luís – Desculpem-me. Estive a preparar umas coisas e não dei pelo
tempo passar… (Com enlevo.) Para mim, o mais importante é o que queremos
transmitir às pessoas. Não interessa que se fiquem apenas pelo riso que
provocamos, precisamos é de mudanças sérias e o teatro poderá apontá-las!
Beto – Estás inspirado, homem! Mas não te ponhas a falar dessas
mudanças lá na fábrica, ainda vais para o xadrez.
Luís – (Desconfiado.) Eu sei com quem estou a falar, não é
verdade?! (Fixa o olhar em cada um dos presentes.)
David – Luís, não tens razões para nos olhar assim! Sabes muito bem
que conhecemos as tuas lutas e que tens contado connosco!
Luís – Desculpem-me. Tenho andado bastante nervoso e depois não
controlo o que digo.
Zé
– Outra vez aquilo das Remolhas?! Mais arroz, Luís! Risca isso da memória de
uma vez por todas!
Luís – Também, mas não só. Há certas coisas que vos quero dizer. De
hoje não passa!
Quim – (Repara nas horas.) Mas não será melhor ir primeiro
comer os pêssegos. Amanhã contas-nos tudo no café.
Luís – Mas se vão ensaiar uma peça para o Natal, é preciso
procurá-la ou escrevê-la. É preciso falar da pátria e de tudo o que nos afasta
dela! É preciso falar de tudo o que ainda resta e que a mantém admirável! (Levanta-se.
Dramático.) O império continua a cair aos pedaços e continuamos a derramar
sangue inocente numa guerra sem sentido nenhum.
Choraram as mães, choraram as esposas,
choraram as irmãs, choraram os filhos, choraram as noivas que ficaram por
casar, para que o Longe se abrisse em flor. Passamos o Bojador, passamos o
Adamastor e tudo valeu a pena!
Mas choram agora de novo as nossas mães,
as nossas esposas, as nossas noivas que não querem ver-nos partir. Já não
levamos no olhar as formas invisíveis Da distância imprecisa, já não
buscamos na linha fria do horizonte A árvore, a praia, a flor, a ave, a
fonte – Os beijos merecidos da Verdade. Move-nos uma vontade que não é
nossa, uma causa estranha e distante. É de novo o gigante Adamastor que nos
castiga por termos ultrapassado e abusado dos seus vedados términos!
Perdida a voz do homem do leme, perdida a vontade de D. João Segundo, resta-nos
uma pátria desorientada, que procura reencontrar-se nos retratos partidos, espalhados
pelo chão…
Zé
– (Espanto e divertido.) Genial! Também quero ser tocado pelo espírito
das Remolhas! Luís, tu tens de escrever essas frases! Quem sabe integrá-las
numa peça… Tu bem podias ter continuado a escola e ser estudante de Coimbra!
Luís – (Avança ainda enlevado.) E que pátria queremos para
além destas fronteiras que há séculos nos enquadram, para além desta língua
enraizada e mais antiga do que as fronteiras? Para além desta consciência
coletiva do passado e do presente incerto? Que futuro queremos em conjunto? Que
liberdade teremos para o decidir? Virão dizer-nos que os filhos não são nossos?
Virão dizer-nos que a família é um obstáculo ao superior e inquestionável
bem-estar coletivo? Porque teremos nós de partir, deixando no nosso país quem
nos quer bem?
David – (Levanta-se.) Dá cá um abraço, homem! Sábias palavras
as tuas, este momento foi único e merecia um palco, uma plateia, um aplauso
grandioso! Sei do que falas. E acho que o segredo está na moderação, nunca nos
extremos. Não é porque não nos deixam falar ou sequer escrever que poderemos
depois descer pela palavra ao mais reles exercício da liberdade de expressão,
um lamaçal de onde todos saem mais pequenos. Não é porque agora não nos deixam
aprender que depois tenhamos de aceitar qualquer escolha orientada e mascarada
de liberdade, ou aceitar uma escola assustada, desorientada, obrigada a bater
palmas ao insucesso, justificado pelo contexto que nunca teve vontade de
alterar!
Manuel – Meus senhores, penso que encontramos aqui o filão da nossa
peça. Serão as vossas palavras a minha inspiração.
Zé
– (Para luís.) Calma, companheiro. Que eu saiba ainda ninguém te chamou
para a guerra. E depois sabes muito bem que há maneiras de resolvermos o
problema, basta conhecer a pessoa certa.
Luís – Ó Zé, mas não pode ser assim! Nem toda a gente conhece a
pessoa certa, nem possibilidade de falar com a pessoa certa, percebes? Não se
pode resolver assim o problema. Olha o caso do Abel, foi adiando… apoio à
família… mas depois não lhe restou outra solução. Eu não tenho alternativa.
Quim – Ainda bem que ninguém nos ouve! Eu continuo a dizer que o
melhor é irmos todos aos pêssegos.
Zé – Não é tarde nem é cedo. Vamos a
isso!
Levantam-se e saem. Ouve-se Trova do
vento que passa. Apagam-se as luzes.
Cena XIII
Luzes. Manhã do dia seguinte. Fim da
missa, saem os fiéis e conversam o necessário com amigos e vizinhos. Juntam-se
Luísa, Josefa e Lina, falam discretamente. Surge também o Pe. Alcino. Traz um cestinho
na mão.
Pe. Alcino - Ó Luísa! Aguarda lá, rapariga! Preciso
da tua ajuda.
Luísa - Bom dia, senhor Padre! Até parece coisa difícil. Diga lá, que
nós as três cá estamos para o salvar.
Lina – E eu a pensar que os padres não precisavam de ajuda… um homem
tão perto de Deus de que ajuda há de precisar?!
Luísa - Ó Lina, tem juízo, mulher. Tento na língua! Olha que o Pe.
Alcino ainda te excomunga.
Pe. Alcino - Deus fez-nos à Sua imagem e
semelhança, mas creio que lá pelo meio cometeu alguns erros... nem todos saímos
perfeitinhos!
Lina- Tem razão, senhor padre! Por isso é que nos vem pedir ajuda
para alguma coisa!
Pe. Alcino - (Ri-se da agudeza de Lina. Diz o
que pretende.) Muito bem, Lina. Deus quer-nos assim, bem-dispostos e ágeis
de pensamento. Esse ninguém corta. Mesmo que que o calem ou amordacem, ele
escapa sempre nem que seja nas asas do silêncio...
Lina - Sim senhor, até parece um poeta ou um daqueles cantores de
Coimbra. Mas tenha cuidado porque andam atrás deles para os calarem...
Pe. Alcino - (Olha à volta. Repara que só restam
as três mulheres. Para Luísa.) Preciso de meia dúzia de ovos. Podes
colocá-los neste cesto e deixá-los mais logo à porta da residência. (Entrega-lhe
o cesto.)
Josefa – E para que precisa dos ovos? Por acaso não precisará o senhor
padre de um bolito? Não será melhor deixar à sua porta o bolo já pronto? Ó
Luísa, deixa estar. Tu já tens muitas freimas, ainda por cima agora com o
problema da tua sogra...
Pe. Alcino – O Espírito Santo nunca me deixa ficar
mal, nem mentir! (Para Josefa.) Vês como te segredou a verdade? Se me
fizeres o bolo, pode ser aquele rolo de que eu tanto gosto, quer dizer, é para
os pequenos da catequese... (Todos riem. Aproxima-se mais de Josefa.) E
não te preocupes com o teu Luís. Tenho falado com ele e sei muito bem as causas
da sua tristeza, da sua angústia... não temas, Josefa, Deus há de ajudar-nos a
encontrar uma solução. Também sei que estás de esperanças, por isso todo o
cuidado é pouco. Essa criança é a nossa esperança, não te deixaremos por um
minuto que seja. Logo, logo, o Luís encontrará uma forma de apagar aquela ânsia
que o consome. Haveis de casar e cuidareis muito bem dessa criança.
Josefa – Deus o oiça, senhor padre. Ele até era para ter vindo comigo
à missa que mandámos rezar pela mãe dele, que Deus a tenha, mas ontem depois da
ceia disse-me que tinha de ir fazer o turno da meia-noite, que faltava um
colega e que o patrão o mandara chamar... há de estar a chegar a casa.
Pe. Alcino – Pois foi...
Josefa – O senhor padre sabe?!
Pe. Albino - Sim, ele ontem encontrou-me e por
acaso falou-me dessa troca com o colega. (Procura desviar a conversa.) Ó
Luísa, então toma lá o cestinho e vê se mo devolves com os ovos que te pedi.
Até deixei aí um bilhetinho para não te esqueceres do pedido. Lê-o com atenção.
Josefa – Sim senhor! Grande negócio. Então agora fica com os ovos e com
o bolo! (Pe. Alcino sorri e sai.)
Cena XIV
Lina - (Para Luísa.) Vamos lá ver o que diz esse bilhetinho. (Luísa procura-o, retira-o e constata que se trata de um sobrescrito.) Abre, mulher! Afinal o padre Alcino merece os ovos e o bolo. Abençoado homem!
Luísa - (Verifica se alguém as observa e só depois abre
cuidadosamente o envelope e desdobra lentamente a carta. Lê. Ouve-se o
instrumental de Cantar de Emigração de Adriano Correia de Oliveira.) Minha
querida mulher, espero que esta carta vos encontre de saúde. Cheguei são e
salvo, graças a Deus. Já estou com o Fernando e vou começar a trabalhar para o
patrão dele.
Foi uma longa viagem que fiz juntamente
com mais seis companheiros vindos de vários lugares do nosso amado país. Nunca
os esquecerei. Fomos como irmãos, juntos vencemos o frio, a fome, o medo e a
saudade!
E o nosso Toninho? Diz-lhe que estou bem
e que em breve estaremos juntos. E a minha mãe como tem passado das costas? E o
meu pai? Como é que ele se aguenta com a polícia sempre a rondar-lhe a porta?
Querida mulher, em breve voltarei a dar
notícias e nessa altura saberás para que morada me poderás responder.
Um abraço especial para o nosso padre
Alcino, pois, sem ele, esta carta não teria chegado às tuas mãos.
Um beijo para todos.
Abel
Ps: Sei que o Luís também vem a caminho! (Josefa
tira-lhe de imediato a carta das mãos e continua a ler. Em choque. Treme-lhe a
voz.) Cá o esperamos de braços abertos. Cuida da Josefa e que ela tenha uma
boa hora. Que Deus nos ajude a todos. (Josefa sente-se mal. Luísa e Lina
amparam-na até à saída. Ouve-se Cantar de Emigração de Adriano Correia de
Oliveira.)
Cena XV
Final da tarde. Café Central. Ao balcão, Joaquim, numa das mesas, Zé, Quim, Francisco e Beto.
Francisco - Zé, já te disse que a situação não
está para brincadeiras.
Zé
- Então, mas alguém percebeu o que aconteceu ontem nas Remolhas? Fomos levados
na certa! Nós a pensar que enganávamos o Luís e afinal foi ele quem se riu por
último. Onde se terá metido?
Joaquim - (Intromete-se.) Já a fizeram bonita outra vez!
Beto - (Tentando desviar.) Ó senhor Joaquim, então a sua
patroa sempre vem amanhã para casa? Isso é que são boas notícias!
Joaquim - É verdade. Se Deus quiser, amanhã já dorme em casa.
Zé
- Veja lá se não a desafina outra vez. E vá com jeitinho para não partir as
cordas!
Joaquim – Ó Zé, tu não sabes que é dos violinos mais velhos que sai a
melodia mais pura?! Tu não puxes por mim, rapaz! Mas em frente: contem-me lá o
que se passou ontem à noite. (Os rapazes entreolham-se.)
Zé
- Fala tu, Francisco.
Francisco – Não é tão fácil como parece... há
dias, combinámos aqui no café pregar uma partida ao Luís que diz que ali nas
Remolhas há uns espíritos que o assustam, quando ele vem do trabalho. Vai daí,
ontem, depois da reunião do grupo de teatro, fomos com ele até aos campos do
senhor Manuel das Remolhas para comer uns pêssegos madurinhos.
Quim – É claro que o meu irmão não foi ao ensaio nem aos pêssegos,
porque tinha lá em casa um servicinho para fazer...
Joaquim – Percebo, percebo...
Francisco – Eu fui antes deles todos e meti-me no
campo de milho com uns lençóis amarrados numas estacas pronto para entrar em
ação. E é aí que a coisa começou a dar para o torto. Estavam todos a comer os
pêssegos, confiantes no sono do senhor Manuel, todos divertidos, todos
satisfeitos com o repasto, quando eu desato a fazer ruídos no meio do milho, (Imita,
gesticulando.) uuuuuuuu, uuuuuuu, uuuuuu, e aqui o Zé, sem demora, aponta
para o campo e grita: “O Demónio das Remolhas! É o Demónio das Remolhas!”
Zé
- Pois foi. Aquilo é que foi, estava um cenário bem montado!
Francisco – Pois, mas um dos atores resolveu
alterar o guião: então não é que o Luís desata a correr pelo campo de milho aos
gritos e na minha direção!? Baixei logo o material e fugi a sete pés dali para
fora.
Quim – E nunca mais vimos o Luís! Ainda demos a volta ao campo duas
vezes e não encontramos o raio do homem. Esta manhã, soubemos que não foi à
missa por alma da mãe, o que não é normal da parte dele. Dizem que teve de
substituir um colega no turno da meia-noite, mas ele a essa hora ainda estava
connosco e também ninguém o viu hoje na fábrica! Para piorar a situação, a
Josefa foi para o hospital depois da missa... dizem que a rapariga está grávida
e a coisa pode estar a correr mal.
Enfim, um reboliço!
Zé
- Nós não queríamos o mal de ninguém, senhor Joaquim, mas parece que as coisas
se descontrolaram...
Joaquim – Calma, rapazes. Às vezes, as coisas não são bem como nós
pensamos, como nós as queremos, como nós as vemos...
Francisco – E isso quer dizer o quê?
Joaquim – Soube há pouco que a Josefa já regressou do hospital. Ela e a
criança estão bem. Foi só um susto!
Zé
- Bom, pelo menos isso. E do Luís sabe alguma coisa?
Joaquim – Ainda não. (Baixo.) Mas conto saber em breve. Vocês
não vão abrir a boca em lado nenhum, ouviram? (Gestos concordantes.) Nos
próximos três dias, não vou abrir o café. Tenho de cuidar da minha Rosa. A
Luísa dá uma grande ajuda, mas não quero deixar a minha mulher sozinha, nestes
primeiros dias. Porém, quero-vos todos aqui no sábado, um pouco antes das nove
...
Quim – Eu e o Beto não podemos vir. Nessa altura já iremos no Vera
Cruz para o Ultramar.
Joaquim - Até estranho não terem sido chamados mais cedo... e vocês
querem ir? Sempre vos ouvi protestar contra a mordaça que não nos rouba o ar e
as palavras…
Zé
- Já lhes disse que a coisa se pode arranjar. Aqui o senhor Joaquim conhece
umas pessoas que sabem mexer os cordelinhos...
Beto - Não adianta! Nós vamos porque assim tem de ser. A pátria é o
outro valor mais alto que se levanta. A pátria precisa e nós dizemos presente!
Joaquim – Pois eu estou de acordo. A pátria, sendo de todos, precisa de
todos. Mas também li coisas muito acertadas no livro que ali tenho do Sttau
Monteiro: quando a pátria está em perigo aqui-d’el-rei que a pátria é de todos
– e vai tudo para a guerra! - acabada a guerra, chegado o tempo da partilha, da
distribuição, então a pátria já não é de todos, é só de alguns.
Quim – Certo. Mas não esqueça o senhor Joaquim que a pátria que
temos hoje tem séculos de construção. Não lutamos apenas pelo que temos no
presente, mas também pelo passado que já fomos. Não estavam enganados aqueles
levantaram a espada para desenharem as fronteiras no norte e a nascente. Não
estavam enganados aqueles que se atreveram pelo mar desconhecido e nas terras
por eles descobertas misturaram saberes e falares. Não vou demolir uma casa em
função das pessoas que a habitam num determinado tempo.
Joaquim – Tende muito cuidado. A vossa vida e a de quem lá está tem o
mesmo valor.
Beto – Mas aqui ninguém diz o contrário. Vamos para que o nosso país
se mantenha unido e forte! Esses grupos que se rebelaram querem livrar-se de
nós e não veem que de imediato ficarão subjugados por quem lhes fornece as
armas e os quer explorar. Querem, dizem eles, gerir o destino do território que
é deles, mas não percebem que já outros os dominam.
Joaquim – Que Deus vos acompanhe e vos traga de volta sãos e salvos!...
Enfim, no sábado, cá vos esperarei. Até lá. (Saem. Fica para último o senhor
Joaquim que arruma mesas, cadeiras, balcão. Ouve-se a música Menina dos olhos
tristes de Zeca Afonso.)
Cena XVI
Sábado depois da ceia. Café Central. Todos em cena. Conversam. Alguma ansiedade nos rostos, no de Josefa em particular.
Padre Alcino – Aquilo é que foi um susto, Josefa!
Agora já tens outra cor. A criança que esperas há de tornar-se forte como o pai
e linda como a mãe!
Zé
- Ó senhor padre Alcino, o senhor parece um trovador. Essas palavras tão
bonitas parecem tiradas de uma cantiga de amor, uma daquelas que em tempos recitamos
no teatro de Natal!
Padre Alcino - Tem juízo, Zé! Deus criou a beleza e
devemos alegrar-nos com ela. E as palavras são uma boa forma de o fazermos.
Zé
- Outra tirada como essa e tem um poema feito!
Lina – O que nos vale é aqui o senhor padre, para nos dizer umas
palavras bonitas!
Padre Alcino - Já sabem que a minha casa é a casa do
Senhor e está sempre de portas abertas para vos acolher, têm é de ir dormir a
vossa casa.
Rosa (Sentada numa cadeira, ainda frágil.) - O melhor é virem
todas aqui para o Café Central, senão o senhor padre habitua-se mal e passa a
vida a comer doces...
Padre Alcino – Ora, ora, D. Rosa! Sabe muito bem que
doces só no Natal e na Páscoa! Mas olhe que bem podia ser mais vezes, para
compensar as agruras que por aí vejo.
Rosa – (Concordante.) Tem toda a razão! E o que o senhor tem
feito pela nossa juventude não pode ser esquecido: dá-lhe espaço para reunir,
para pensar, dá-lhes livros para ler, apoia as suas causas. Tiro-lhe o chapéu e
desejo muito que essa gente da censura nunca lhe bata à porta, como tem batido
aqui à do nosso café. O meu Joaquim, depois que o nosso Abel se passou para
França para fugir à guerra, apanha com eles quase todas as semanas. Como se o
meu pobre homem fosse um desses passadores que levam a nossa gente para fora
destas grades...
Zé
- (Alarmante, depois de se ter abeirado da porta e de ter observado a rua.)
Eles vêm aí. Eles vêm aí. Estacionaram mesmo agora! (Todos percebem e fazem
silêncio de imediato.)
Cena XVII
Entram dois guardas. Um deles é o mesmo da cena II. Observam o ajuntamento, procurando inconformidades.
Guarda - (Desconfiado. Para o Joaquim.) Alguma razão para
juntar aqui esta gente? A lei não permite ajuntamentos que não sejam
devidamente autorizados. A canalha anda lá fora sem rei nem roque e aqui dentro
as mães perdidas na conversa, no meio dos homens, quando deviam estar a cuidar da
casa e dos filhos! Também o homem a Deus dedicado não devia participar nesta
pouca-vergonha!
Padre Alcino – O senhor guarda sabe muito bem que
Deus quer-me junto dos homens. É junto deles que a palavra de Deus ganha
sentido.
Guarda – O senhor padre tem é de meter-se na sua igreja. E é lá que os
seus paroquianos o devem procurar e não no café, no meio da indecência.
Padre Alcino – O que aqui vejo é gente boa que
convive de forma saudável!
Guarda - (Duro. Aproxima-se também o segundo guarda.) O senhor
padre tenha cuidado com as palavras que profere, senão sou obrigado a levá-lo
para a esquadra.
Rosa – Ó senhor guarda, eu é que sou a culpada deste ajuntamento.
Daqui a pouco já os mando a todos para casa. Estão aqui a meu convite para
celebrar o meu regresso do hospital. Estive vários dias internada e muito mal.
Olhe que quase não voltava. O que me valeu foi um enfermeiro natural aqui de
Milheirós que trabalha no Santo António.
Guarda - (Mais calmo.) Muito bem… (Para Josefa.) Então e
o seu marido? Por que razão não embarcou para o Ultramar com os outros dois
homens aqui da terra? A senhora tem o dever de nos dar conta do seu paradeiro
sob pena de o levarmos preso, logo que lhe ponhamos a vista em cima.
Josefa – (Desembaraçada.) Paradeiro?! Isso também eu queria,
senhor guarda! Eu sei lá onde se meteu aquele estupor... Deixou-me aqui
desamparada e de esperanças, veja lá a minha vida!
Zé
- A culpa é das Remolhas e dos espíritos que por lá andam!
Guarda - Não brinque com a autoridade, olhe que o levo para a esquadra
e vem de lá outro! Direitinho que nem um fuso!
Francisco - É verdade, senhor guarda. O marido
aqui da Josefa, regressava há dias da fábrica, perto da meia-noite, atravessou
o campo de milho do senhor Manuel das Remolhas, para atalhar caminho, já se vê,
e zás!, desapareceu!
Guardas – Desapareceu?!
Francisco – É verdade, sim senhor, nós vínhamos
todos juntos do trabalho e ele disse que nos esperava do outro lado do campo… Ainda
o procuramos durante uma ou duas horas, pensamos que lhe tinha dado alguma
coisa... e nada. Nunca mais o vimos.
Guarda – Aqui anda história! Ninguém desaparece num campo de milho!
Zé
- Eu bem digo que a culpa é dos espíritos, das almas do outro mundo que
acamparam nas Remolhas, no campo de milho do senhor Manuel.
Guarda (Ameaçador.) Ó homem, cala-se já ou também desaparece
sem dar conta disso! Estaremos atentos e por perto. Os refratários e os
desertores serão todos apanhados! (Saem os guardas. Silêncio.)
Cena XVIII
Entra o senhor Manuel das Remolhas. Sente-se intimidado com o número fregueses ali presentes. Hesita.)
Zé
- Boa noite, senhor Manuel! Não se vá embora, a guarda já se foi. Beba um copo
connosco. Mas então hoje veio ao café!? Você não costuma vir aqui, gosta mais
de parar na tasca Palhaça!
Manuel - É verdade, Zé! Mas disseram-me para passar por aqui. Foi o
irmão do Quim, ali o Francisco. Há dias, encontrei-o nas Remolhas de passagem e
perguntei-lhe se ele sabia de alguém que anda há noite a estragar o milho do
meu campo. Acordo de madrugada para regar e é um desencanto – milho tombado por
todo o lado. Se eu apanho os valdevinos que me andam a estragar o ganha-pão,
meto-os na cadeia e apanham um arraial de porrada.
Francisco – Por isso é que eu lhe disse para
passar por aqui. Pode ser que alguém saiba de alguma coisa.
Zé
– E o senhor Manuel é que trata da porrada?
Manuel – Não senhor, eu já não tenho braços nem pernas para isso. Eu
vim cá é para vos pedir ajuda. Vocês é que podem fazer uma espera a esses
meliantes e dar-lhes uma lição. Claro que depois vos agradeço – tenho lá uns
pêssegos madurinhos e dou-vos uma cesta deles.
Zé
- E são mesmo muito docinhos, uma maravilha!
Francisco - (Repreende o Zé com o olhar.)
Nós assim pensamos! Basta ver a cor deles que logo sabemos que devem ser
madurinhos.
Zé
- Pois, mas o problema não é assim tão fácil. Nós já ouvimos dizer que aquilo é
coisa do outro mundo. Até se diz por aí que são os espíritos das Remolhas.
Andam por ali a brincar no meio do milho, levam-lhe os pêssegos e ainda levam
as pessoas.
Manuel – Realmente também tenho notado a falta dos pêssegos, mas
sempre pensei que eram os pássaros...
Francisco – Uns passarões!
Manuel – Agora desaparecer pessoas...
Francisco – Pois, nós também não sabemos bem o que
pensar. Dizem que o Luís quando vinha da fábrica pertinho da meia-noite entrou
no campo e nunca mais ninguém o viu. Até a polícia anda à procura dele.
Manuel – Então posso contar com a vossa ajuda uma noite ou duas para
ver melhor o que por lá se passa? Até podem ficar de vigia na minha sala. De lá
vê-se bem o campo de milho e os pessegueiros.
Zé
- Bom, se o senhor Manuel tivesse aí uns pêssegos para nos oferecer, até era
mais fácil a concordância…
Manuel – Por acaso, venho prevenido. Só um momento. (Vai ao
exterior e volta com um cesto de pêssegos.) Aqui têm. Já não há desculpa,
amanhã lá vos espero.
Zé e Francisco – Lá estaremos!
Zé
- Não se esqueça de ter lá na sala uma garrafinha de vinho fino, para nós
afinarmos a vista e o ouvido! (Manuel sai agradecido.)
Cena XIX
Toca o telefone. Silêncio. Joaquim chama a Luísa e a Josefa para junto dele. Atende.
Joaquim – Estou, Café Central, Milheirós de Poiares, faça o favor. (Baixa
de imediato a voz.) Abel! Meu querido filho! Estás bem? Sim? Ah! ainda bem!
… Estás a trabalhar no aeroporto... pois... na limpeza... pois… claro, certo...
e não há mal nenhum, ganhas o teu com dignidade, com o suor do teu rosto... a
tua mãe? Já está aqui connosco... está fora de perigo, sim! Fala agora com a
Luísa e com o Antoninho que querem muito ouvir-te... (Passa o auscultador.)
Luísa - (Fala como se ninguém a ouvisse). Estou, amor, sou eu!
Tens-te lembrado de mim? … Todos os dias... não sejas mentiroso!... Eu sei, eu
sei, também te amo muito... sim, eu espero, eu espero... mandas-me buscar...
sim, tenho sempre tudo pronto... e não te ponhas a olhar muito para o lado,
assim para esses rabos de saias que às tantas são mais curtas do que as
nossas... eu passo. Antoninho, vem cá, fala com o pai.
Antoninho – Pai? Onde estás? Quando é que voltas
para casa? Os meus amigos andam a dizer que tu fugiste da guerra, é verdade?...
Eu sei que tu és muito forte... eu digo-lhes... e que te vou ver em breve...
está bem! Pai, o Benfica foi campeão outra vez! E o Eusébio ganhou a bola de
ouro!... Sim, oiço o relato com o avô! Adeus... e não te esqueças das chuteiras
que me prometeste! Eu passo... (Faz sinal a Josefa que se aproxima.)
Josefa - És tu, Luís! Ai que eu tinha o coração tão apertado! Um dia
contas-me tudo... passaste a pé os Pirenéus? Ai Nossa Senhora! Mas agora já
estás com o Abel...pois, já fico mais descansada... há sempre lugar para mais
um. Podias ter-me dito que ias naquela noite... Eu sei, para eu não sofrer... e
tu também... pois...estou, estamos bem, agora estamos bem... sim, fui-me abaixo
quando soube... Já sabes?! As más notícias correm depressa! Sim, foram chamados,
a esta hora já o Beto e o Quim vão no
alto mar a caminho da guerra. Olha, sabes o que se diz por aqui? Que foste
levado pelos espíritos das Remolhas! Vê lá tu como é a cabeça tola do povo! Ai
tu sabias que era o Francisco!? Os Pevides não ficaram muito convencidos! Mas o
senhor Manuel, coitado, anda cismado. Se calhar é melhor acabar com a
brincadeira, às tantas já não semeia mais milho naquele campo e nem farinha tem
para o pão e para as galinhas… Sim, quando for possível… vou eu e a Luísa e
mais tarde os nossos filhos... tenham juízo! Está bem, no final de agosto,
falamos outra vez. Escreve-me assim que possas. Adeus, meu amor! (Desliga.)
Cena XX
Manuel - (Entra de novo no café. Pensativo, dividido, inseguro, assustado. Algum silêncio expectante.) Vocês, há pouco, disseram que os espíritos que andam lá pelo meu campo também levam pessoas? (Alguns acenos afirmativos.) Bom, será que me podem acompanhar esta noite até casa? Eu sei lá o que me pode acontecer pelo caminho...
Francisco- (Sério.) O melhor será irmos
todos. Assim, até os espíritos se assustam e nunca mais o incomodam.
Manuel – Todos?!
Francisco – E a canalha também, os espíritos nunca
se deram bem com a alegria das crianças!
Zé
- Não pense duas vezes, pegar ou largar, leva-nos consigo, abre duas
garrafinhas daquela pomada que há de ter bem escondida, umas rodelas de
salpicão, umas lascas de presunto, marmelada para a criançada e os espíritos
nunca mais lhe estragam o milho!
Manuel - (Hesitante ainda.) Se me garantem... (Breve
silêncio.) Vamos lá então. Mas asseguram que...
Todos – Sim!
Francisco e Zé – Viva! os Espíritos das Remolhas!
Todos – Viva!
Cantam Ele e ela, enquanto saem para casa
do senhor Manuel.
Fim