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Cenas maiores

 


XIV

 

- Quais são as tuas causas?

A pergunta assim libertada dirigia-se a cada um deles. Esperou. O silêncio obrigou-o a procurar respostas nos olhares que fitavam o vazio. Também aí encontrou silêncio, este mais reservado e profundo. Ainda lhes mostrou Maria, que se mostrara capaz de questionar os governadores que fugiam cobardemente, abandonando o povo à sua sorte. E Manuel que ousara enfrentar esses representantes de um poder que lhe roubava a pátria...

- Que lutas determinam a tua existência? - insistiu.

O silêncio permanecia, mas tornou-se inquieto. Importava naquele momento analisar a peça que representavam num palco que era também plateia, onde todos viam e eram vistos. E tudo parecia reduzir-se ao círculo de luz que emanava da consciência de cada um. Era um espaço de onde tinham retirado todas as portas, todas as janelas. Um palco vazio. E ali estavam eles sem a deixa necessária que tinham recusado ou que não puderam ouvir.

Não lhes perguntou se eram portugueses, construção sempre inacabada ou adiada, truncada,

se vinham do Santo Sepulcro, lugar obrigado aos bastidores por alguns encenadores, assustados com o sofrimento que os desinstalava,

se as armas e os barões assinalados permaneciam admiráveis,

se os Deuses da tormenta e os gigantes da terra suspendiam de repente o ódio da sua guerra e pasmavam, ainda, tal o assombro provocado pelo Argonauta que seguia em direção ao alto. 

Não lhes perguntou se tinham família, lugar instável onde já não importava ficar, aonde já não importava voltar.

Um palco vazio. E tudo parecia reduzir-se ao círculo de luz que emanava da consciência de cada um.

 

XV

 

 - Romeiro, romeiro, quem és tu? - leu, por fim. - Então, apontando com o bordão para o retrato, que sempre o acompanhou:

— Ninguém!

Tinham agora a deixa necessária. Importava trazer para cena as causas que os farão buscar na linha fria do horizonte e colher os beijos merecidos da Verdade. E aguardar pelo recado que trarão cumpridos os vinte e um anos.


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