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A eternidade que nos falta


 

Dispunha os materiais necessários na mesa e abria as diversas plataformas que o acompanhariam na aula que iniciava. Um tempo aparentemente desligado, que permitia aos alunos os últimos argumentos, as últimas palavras ainda agarradas ao intervalo, mais ou menos sussurradas, mais ou menos refiladas e essas é que eram boas, pareciam portas entreabertas por onde era necessário entrar. Percorrer o território deles para que depois viessem visitar o dele.

- Aguardemos pela legislação que estabelecerá as normas. Por agora são ainda propostas em discussão – intrometeu-se, procurando chamar a si a discussão.

- Mas concorda com a obrigação de fazer exames no final do ensino secundário? – quis saber um deles.

- Não acha muito quatro exames? – protestou outro.

Por princípio, não rejeitava aquela avaliação. Seria mesmo um momento importante no seu percurso escolar. Porque não?

- Tenho dúvidas nos exercícios que indicou.

Era aquela uma oportunidade imperdível para reorientar o trabalho. Procurou então que todos conhecessem a dificuldade anunciada.

- Não - explicou. - O Mestre de Avis era filho de D. Pedro I e de uma das suas amantes, portanto, meio-irmão do rei D. Fernando…

A reação foi imediata:

- Amante!?

- E não foi a única!

Mais uma vez, a réplica foi pronta:

- Qual é o espanto? Até parece que no nosso tempo o amor é para sempre! Já ninguém vive toda a vida com a mesma pessoa!

E agora? Valeria a pena mostrar-lhes que o amor precisa de tempo para acontecer, de provas duras, de eternidade? E que, se assim não for, poderá tornar-se um edifício inacabado, abandonado, uma ruína para sempre agarrada à terra que o viu nascer?

- Os meus avós vão celebrar as bodas de ouro este ano! – arriscou outro, contrariando. – Não sei como é que o meu avô tem aquela paciência toda com a minha avó!

Paciência, dedicação na fragilidade... sorriu e levou-os a conhecer, admirando, aqueles dois seres unidos havia cinco décadas. Pediu-lhes que o fizessem como quem observa uma árvore deitando-se junto às suas raízes... Singulares eram aqueles troncos que se agarravam profundamente à terra e cresciam lado a lado, partilhando as alturas. Os ramos e as folhas bailavam inspirados pela brisa, parecendo tocar-se levemente como quem segura a mão daquele que ama e o olha fixamente para lhe dizer o que as palavras já não alcançam. E que reparassem nos rebentos que surgiam da terra serenamente acarinhados pelas gotas que lá do alto as folhas libertavam. Cada semente uma dádiva, uma prova de amor, única subtração capaz de multiplicar!

-  Imagino a felicidade de ambos – acabou por reagir com simpatia.

-  Que sentido faz ler um texto do século quinze?  - interrompeu outro já inquieto com o rumo da conversa.

Apeteceu-lhe brincar com as palavras que lhe ficaram a bailar na memória desde a adolescência... a História é a maneira de bem pôr os problemas de hoje graças à indagação científica do passado virada para a preparação dos tempos vindouros... Mas não.

-  Também nos permite perceber que o amor começa quando é uma resposta construtiva. E, como somos uma construção inacabada, sempre inacabada, pode tornar-se eterno.

O rapaz encolheu os ombros sem se render, mas as palavras ficaram. Também poderia procurar a eternidade nas suas escolhas, fugindo das propostas que nunca amadurecem, incapazes da semente que nos perpetua.

 


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