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A mostrar mensagens de 2023

Hoje é dia 24!

  Estava sentada no sofá, confortável e serena. Finalmente, os horários dependurados no frigorífico tinham acalmado, abrindo uma certa clareira que tornava o tempo mais confortável e macio.    A manhã estava fria, recuperava da noite que deixara nos carros parados nas bermas um manto gelado. Também as ervinhas se curvavam sob a geada que as cobria com uma brancura que aguardava os primeiros raios de Sol para se desfazer em pequenas gotas que desciam depois à terra que ansiava pela primavera ainda distante.   - Bom dia, filha!   Voltou os olhos brilhantes para o pai, juntou as mãos como quem segura uma expectativa que não quer deixar escapar:   - Hoje é dia 24! Hoje é dia 24!   Sim, dia 24. E ficou a p ensa r na esperança que saltava nos olhos daquela criança.   - Os primos mais logo também vêm?   - Claro, os primos, os tios, os avós, estaremos todos!   A esperança começa sempre no presente. É no presente que germina e ousa brotar, romper a fronteira do tempo, ser o que há de ser, um ad

A montanha que deu à luz um rato

Caminhou em direção ao rapaz, enquanto se lembrava daquela imagem que durante vários dias se tinha apoderado do seu pensamento. Sempre que havia um intervalo, uma nesga de espaço e de tempo, era para aí que teimosamente ele se deslocava.    Uma secretária, um funcionário cinzento, sentado, encerrado nos seus gestos ensaiados e repetidos, agarrado às palavras cansadas que articulava morosamente, palavras engaço, relíquia do que foram. À sua frente, alinhados, animais vários. Orgulhosamente chegados dos três elementos e assim dotados para as circunstâncias onde se formataram. Ouviam, parece que ouviam, a apresentação da tarefa. Em cada rosto, uma amálgama de alegria, espanto e desilusão. Assim, por esta ordem … Parece que ouviam. O estimado senhor, do alto da sua calvície, não dava conta de que os animais à sua frente dispostos não entendiam os sons, não os descodificavam, eram os significantes desprovidos de significado. Terá sido por isso que nenhum deles subiu à robusta árvore que se

Perus à chuva

                    - Acorda, Mateus! Temos um peru no telhado! – alertou a Teresa, enquanto fazia deslizar os cortinados, deixando entrar repentinamente no quarto a luz do dia.                 - Fecha isso! – protestou o Mateus, escondendo a cabeça debaixo do lençol.                 - A sério! Está ali um peru, no telhado do alpendre – reforçou a Clara.                 - Vão para o vosso quarto, de lá também se vê bem!                 - Já lá estivemos. Agora o peru está mesmo aqui em frente à tua janela. Anda ver – insistiu a Teresa.                 A ave caminhava com alguma dificuldade, dada a inclinação das telhas e a chuva que inesperadamente chegara para interromper o verão. Mantinha o pescoço sempre muito direito, qual periscópio atento a todos os movimentos e a todos os sons.                 - Como é que ela veio aqui parar?! É um dos perus do avô e deve ter voado por cima da vedação – explicou o Mateus, que não resistiu ao inaudito acontecimento.                

Onde moras?

Ato único   Uma praça. Atua um músico de rua iluminado no lado esquerdo do proscénio. À direita, ilumina-se também um banco de jardim junto à montra de uma livraria. I André (Pensativo. Passa pelo músico de rua, para uns segundos, e, mecanicamente, deixa-lhe uma moeda, retirando um pequeno cartão disponível no estojo da viola. Gesto agradecido do artista.)   Francisco (Sentado no banco junto à montra. Interrompendo a leitura de uma antologia de poesia portuguesa.) Bom dia, André! Vais com pressa ou tens tempo para um café? Precisava de falar contigo.   André (Para cumprimentar Francisco, muda de mão os documentos que traz consigo e deixa cair, inadvertidamente, o cartão que tinha recolhido.) Bom dia, Francisco! Hoje é complicado, tenho de ir às Finanças e já estou um pouco atrasado.   Francisco Tudo bem, fica então para outro dia.   André Por mim, pode ser já amanhã. Passo por aqui à mesma hora.   Francisco Obrigado, amigo, conto contigo amanhã