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Dispositivos no caminho

- Bom dia!

O rapaz entrou na sala com a lentidão de quem tem de apanhar o autocarro que nos leva de volta no fim das férias que nunca queremos terminar. Colocou a mochila em cima da mesa e sentou-se. O professor observou discretamente estes movimentos e reparou que os olhos dele ainda não tinham chegado. Percorriam ainda as felizes paisagens interiores que se deixavam vislumbrar na curva que no rosto o sorriso desenhava.

- Bom dia!

Desta vez, os olhos do moço procuraram lentamente a voz que o saudava, igualando a maçada de quem encontra um revisor, imóvel, ao alto, braço estendido.

- Podes colocar o teu telemóvel no cesto, por favor?

Despertou.

- Sim, claro, desculpe!

O professor continuou serenamente a recolha, parando em cada lugar, aguardando o modo sem som, só depois avançando. Sentia a responsabilidade das vidas assim recolhidas, abafadas, estagnadas, algumas em modo de avião. Sentia ainda os tremores, as vibrações protestantes.

- Obrigado!  - agradeceu, ao voltar para junto da secretária. - Peço agora a vossa atenção para o trabalho que vou apresentar.

O rapaz continuava ausente.  Olhava fixamente o quadro branco e tamborilava suavemente na mesa. Uma felicidade que só ele ouvia e que lhe escapava pelos dedos inquietos.

- Também posso ouvir? - murmurou depois de se aproximar o mais possível do rapaz.

- Esqueci-me, peço desculpa, aqui tem – justificou, enquanto entregava os fones sem fios que mantinha discretamente nos ouvidos.

Os trabalhos avançaram. Era necessário recolher as palavras que se organizavam no texto proposto, reconstruir o seu sentido, percorrer a beleza da sua forma. Nada substitui esta viagem ao interior das palavras tecidas! Que paisagem conheces tu, se te limitas a ver o que outros viram por ti? Agarra cada página como um peregrino que percorre os caminhos até à luz! Não leias sobre o caminho, faz o caminho! Então será teu o perfume das palavras, o canto das aves que te guiam nas veredas, o sabor dos frutos que as árvores te oferecem, o calor de cada parágrafo, cada passo que te leva!

- Notificações?! - censurou.

Desta vez o rapaz sentiu-se seriamente desprotegido. Retirou e guardou o relógio smart que deixou de lhe medir os batimentos e de atender aos seus insatisfeitos desejos.

Avançaram os trabalhos.

- Professor, posso usar o meu caderno inteligente para registar as respostas? - atreveu-se o rapaz, enquanto retirava da mochila um tablet.

- ...

Importava fazer o trabalho, que o peregrino fizesse o caminho. Cada um leva os sapatos que lhe servem, que o servem, mas urge fazer a travessia, passo a passo, sílaba a sílaba, página a página, até que, ao longe, se ergue a torre da conquista! A caminhada deixa no corpo as marcas da caminho, sinais que brilham nas outras cruzadas.

- Professor, eu preciso de pesquisar informação. Posso usar o meu telemóvel? - pediu um outro sentado na última fila.

Não teve tempo.

- Posso emprestar-te o meu PC. Tenho-o aqui na mochila... - ofereceu-se o da frente.

Gargalhada geral.

Não deixes de fazer o caminho, peregrino. As palavras que te esperam desenham a senda que só tu podes percorrer. Não as adies assim encerradas e transferidas. Leva-as em cada dispositivo, mas atreve-te a conhecê-las, passo a passo, como quem mata a sede na fonte que o caminho lhe oferece.


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