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Não é o Sol que faz a sombra!


O Sapo Toquinhas acordou cedo naquele dia. Vivia ainda debaixo do velho rododendro que erguia bem alto alguns dos seus ramos. As folhas passavam o dia a tagarelar com as vizinhas que um pouco mais acima e um pouco mais abaixo viviam.
- Ai, vizinha, o nosso inquilino tem saído pouco ultimamente! - dizia uma.
- Quando chegar o tempo seco, verás que sairá mais vezes em busca de água e de alimento. Por enquanto, prefere o conforto da toca onde descansa sobre as nossas irmãs já secas – respondeu outra.
- Reparem, parece que acordou e se prepara para sair – anunciou repentinamente uma das que espreitava junto à entrada da toca.
O Sapo Toquinhas esticou à vez cada uma das patinhas, preparando-se para os longos saltos que o levariam a casa da Musculosa. De seguida, observou cuidadosamente a calçada - ultimamente, eram muitos os gatos que passeavam por ali. Por vezes, até adormeciam deitados ao Sol, junto à parede do anexo. Um Perigo! Depois, com uma das patinhas tocou suavemente uma das pedras da calçada, para sentir se algum carro se deslocava para o alpendre. Nada.
Um,
               dois,
                                três!
Três saltos bastaram para alcançar a japoneira onde se reuniam as formigas. Ali se acomodou, colocando as patinhas sobre as aveludadas pétalas de camélia que pintalgavam a erva verde do canteiro. Sentiu ainda o doce aroma que delas provinha. Fechou mesmo os olhos para que nenhum daqueles perfumes lhe escapasse. Por vezes, os olhos incomodam, interferindo nas alegrias dos outros sentidos!
- Amigas formigas, o Sol está a chegar! Em breve sairemos em busca de alimento. Percorreremos calçadas, treparemos muros e troncos. Entraremos também na casa pelo caminho secreto. Lá dentro, as mais sábias e corajosas chegarão depois à sala do tesouro, onde estão armazenados, sobre socalcos de madeira, os alimentos mais raros do nosso formigueiro. Essas heroínas serão recompensadas com grãozinhos brancos, brilhantes e doces! Mas atenção! Antenas bem atentas!

É sempre com atenção
Que saímos à procura
Da nossa alimentação,
Sempre de forma segura.


No carreiro, nos mantemos,
Temos sempre onde ir;
É segredo que nós temos,
Ninguém pode descobrir.

A Musculosa manteve-se em frente às companheiras, enquanto elas, desmobilizando, repetiam as palavras em ritmo de marcha. Daí a pouco, avistou o Toquinhas e aproximou-se dele.
- Bom dia, Toquinhas! Posso ajudar-te? Não esperava ver-te tão cedo fora da toca!
- Bom dia! Tens razão, Musculosa! Mas preciso da tua ajuda. O carvalho, aquele que na primavera liberta os mais belos ramos onde depois rebentam as mais frescas e incontáveis folhas, está este ano ainda muito introvertido. Não vejo sinais de vida exterior.
A Musculosa pensou durante algum tempo, mas parecia não encontrar uma causa para aquela mudança.
- Poderás falar com as tuas amigas para sondarem as raízes – sugeriu o Toquinhas.
Claro! Podia.
Então foram ambos até ao canteiro onde a Musculosa apresentou o pedido às companheiras.
- Verifiquem se as cavernas do vosso formigueiro incomodam as raízes do carvalho – aconselhou ainda a Musculosa.
De regresso, as formigas relataram que estava tudo bem: as raízes da árvore permaneciam bem agarradas à terra, dela retiravam o alimento necessário; as galerias do formigueiro não impediam a árvore de crescer.
O Sapo Toquinhas e a Musculosa entreolharam-se. E agora?
A formiga reparou depois nas outras plantas que circundavam o canteiro do rododendro. A glicínia mostrava já, orgulhosamente, duas folhas verdes e recortadas no meio dos outros ramos prestes a rebentar. A peónia elevava-se num frágil ramo onde a flor se preparava.
- Já reparaste no carvalho e nas outras plantas aqui à volta? – perguntou a Musculosa. E, perante o silêncio do amigo, continuou. – Todos elas estão ao Sol…
- Menos carvalho – completou o Toquinhas.
- Sim, menos o carvalho.
- Mas, nos anos anteriores, o Sol inundava-lhe o tronco e os ramos! – admirou-se o sapo Toquinhas!
- Claro, mas não encontras nenhuma diferença?
Havia uma diferença, o jovem carvalho crescera apoiado ao velho tronco que a ele fora encostado desde tenra idade. Era um tronco seguro. Mas, no outono anterior, o carvalho tinha ficado só, era tempo de seguir o seu caminho, crescer em busca de luz, do seu lugar ao sol. Porém, não resistiu ao vento forte e frio do inverno e inclinou-se em direção à casa que agora o impedia de ver o Sol. E, sem ele, não rebentaria.
- O Sol tem de tocar os ramos - concluiu o Toquinhas.
- Tem de aprender a procurá-lo!
- Mas como?
A Musculosa teve uma ideia. Era preciso falar com a Teimosa e pedir-lhe para convocar todos os pássaros que por ali perto vivessem.
- Mas o que é que eu lhe digo? – perguntou o Toquinhas.
- A abelha terá de convencer aos pássaros! É preciso que todos se reúnam naquele ramo do carvalho, amanhã, ao nascer do Sol.

No dia seguinte, os pássaros compareceram em grande número. Pousaram no ramo indicado, aguardando por mais indicações. Eram muitos, muitos mais foram chegando, ocupando outros ramos da árvore que foi cedendo ao peso. A Musculosa orientava o movimento daquele bando solidário.
Lentamente os ramos do carvalho apanharam os primeiros raios de Sol. A árvore sentiu o calor invadir-lhe as entranhas e depressa a seiva circulou, levando aos extremos a força necessária para elevar pequenos ramos que logo aprenderam o caminho do Sol.

- Olha, pai, já viste?! O carvalho já tem ramos novos! – admirou-se a Clara ao sair de casa naquela manhã.
- Pois tem! E está muito inclinado! – observou o Mateus.
Não é o Sol que faz a sombra, pensou o pai ao reparar no esforço exemplar da árvore que se dobrava em busca da luz.
- Entrem no carro. Vamos para a escola! Teresa, põe o cinto.

O Toquinhas acompanhou-os com o olhar até que o grande portão voltou à posição de descanso. Sorriu ao perceber que também eles procuravam o Sol, uma forma de fugir da sombra.
Antes de entrar na toca, assistiu ainda ao desfile das formigas que, satisfeitas, regressavam ao formigueiro:

É sempre com atenção
Que saímos à procura
Da nossa alimentação,
Sempre de forma segura.

No carreiro, nos mantemos,
Temos sempre onde ir;
É segredo que nós temos,
Ninguém pode descobrir.



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