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De quem é a tua vida, se a minha também é tua?




A Clara estava sentada na carpete. Alinhava à sua volta vários livros que a Teresa daí a pouco iria comprar; era uma loja virtual, virtual mesmo!
O pai acompanhava aquelas manobras de diversão, enquanto ouvia as intervenções políticas em destaque nos noticiários.
- O que é a eutanásia? - disparou a Clara enquanto equilibrava o último livro que dispunha para venda.
O pai ficou alguns segundos escondido atrás do olhar aparentemente ausente. Tentava uma distração atenta à notícia do momento.
- Pai, não me ouviste? Eutanásia o que é? - reforçou a menina impaciente.
Desta vez o pai fixou-a e quis responder-lhe. Mas uma nuvem fixou-se entre os dois, aparecera sob a forma de uma lágrima tímida.
- Que foi, pai?
Nada, não era nada.
Lembrou-se de falar-lhe do sentido etimológico. Caminho doloroso! Relembrar o passado da palavra não a libertaria das cores frias e silenciosas. Sustentar que é bom o que nos separa, que é bom o que nos afasta e faz sofrer seria lançar um manto negro sobre o brilho da esperança que a frágil idade da menina levantava bem alto!
Lembrou-se ainda de perguntar-lhe se a vida que espreitava pelos seus olhos grandes e inquietos começava e acabava dentro de si, se não havia por ali pedacinhos de quem lhe dera tempo, de quem lhe contara histórias até adormecer, de quem se levantara cedo, dia após dia, para que nada faltasse na sua lancheira.
Dir-lhe-ia depois que a vida dela vinha de raízes profundas, antigas, que vento algum podia arrancar. Raízes que se agarravam a outras raízes. Que a vida que palpitava no seu corpo se entranhava noutras vidas como a da criança ainda no ventre da mãe. Filha, de quem é a tua vida, se a minha também é tua?
- Queres comprar este, pai? Muito apetitoso, com cheiro a chocolate! - propôs a Clara, aproximando o livro do nariz do pai que lhe deu, nesse momento, um abraço demorado. Tinha ali uma porta aberta para a fuga. É que os pequenos descobrem facilmente quando os adultos não sabem a resposta ou não a querem dar. Mas o vazio que deixamos outros ocuparão. Arriscou:
- Lembras-te do gato que a mamã encontrou um dia na rua? Chamou-lhe Sortudo! - A Clara acenou afirmativamente. - A certa altura, foi ficando muito velhinho e doente. Miava com os outros gatos que também viviam no jardim e que nunca o deixavam só. Todos os dias o visitavam, trazendo o melhor da sua caça e por ali ficavam, ouvindo as suas histórias, acariciando-lhe o pelo. Aos poucos o gatinho foi ficando cada vez mais fraco. Apenas os olhos eram capazes de sorrir e de pedir aconchego. Então, à volta dele, passaram a deitar-se sempre dois gatos: respiravam em conjunto, partilhando, naquele abraço, a vida que fica e a que vai. Um dia, deixaram de sentir os movimentos do Sortudo, a barriguinha já não subia nem descia e tinha os olhos fechados, serenos e vencedores. Durante muito tempo, os dois gatos falaram dele aos amigos que viviam no jardim. E, assim, viveu por muito tempo mais nas conversas dos gatos deitados ao sol, nas pedras quentes e macias.
- Eu sabia que o Sortudo já tinha morrido, pai. Isso aconteceu há muito tempo! – reagiu a Clara.
- Sim, eu sei...
A Clara voltou à loja virtual, abriu outro livro com cheiro e chamou a Teresa.
O pai sabia agora que, afinal, as crianças tinham vocação para adulto, seres para a vida. Alguns crescidos esquecem-se disso, tornando-se tristes, soturnos. Sortudos à espera de um ombro amigo com quem sintonizem a sua respiração e a quem possam contar a história das suas rugas, vezes sem conta, até que as raízes se entrelacem e a sua vida permaneça mesmo depois de terminar.
O pai sorriu, desligou a televisão e continuou à procura de respostas, de quem é a tua vida, se a minha também é tua?

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