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A mostrar mensagens de março, 2019

Filho de peixe aprende a nadar

O Mateus elevou a colher e, mesmo antes de provar a sopa, hesitou, voltando a colocá-la no prato. Depois olhou fixamente o pai: - Pai, o filho do peixe é o peixe, certo? - Sim…? - E o peixe sabe nadar? - Sim. - Sempre? - Não conheço nenhum incapaz. - E por acaso sabes dizer-me como aprendem os peixes a nadar? O petiz teve ainda tempo para refazer a pergunta: queria saber se, ao nascer, logo começam a nadar. Mas o que preocupava o pai não era a resposta que agora preparava, mas, sim, as perguntas que ele ainda não tinha feito e que apenas esperavam o momento certo. Respondeu, portanto, com cautela: - Todos os peixes, na minha opinião, aprendem a nadar. E agora já podes comer a sopa? – perguntou, tentando escapar ao assunto. Porém, o Mateus não encolheu a imaginação. Ficou apenas algum tempo pensativo, fazendo rolar na mesa a argola do guardanapo. Ensaiou mais uma colher que elevou lentamente. O pai respirava já, secretamente, um certo alívio. - Pai, tenho uma

Para além do meu umbigo!

O Mateus tinha nas mãos uma narrativa. Delicadamente, deixou que os olhos fugissem pelas margens até se fixarem numa fotografia que permanecia na mesa. Sorriu ao ver-se bébé. Voltou a fixar o texto. Descobriu concordâncias com outras histórias. Que as histórias nunca se desligam, são solidárias, conhecem-se umas às outras. Começou a bater suavemente com a palma da mão numa das páginas. Depressa o ritmo chamou as palavras. Umbigo, umbigo meu, Tu conheces alguém Mais belo do que eu? Umbigo sempre fui Mas depois de ser teu. Antes disso fui cordão E som do coração. Umbigo, umbigo meu, Tu conheces alguém Mais belo do que eu? Umbigo sempre fui Mas depois de ser teu. Antes disso fui ponte, Fui nascente e fui fonte. Umbigo, umbigo meu, Tu conheces alguém Mais belo do que eu? Umbigo sempre fui Mas depois de ser teu. Antes fui colo preciso, Silêncio e sorriso. Umbigo, umbigo meu, Tu conheces alguém Mais belo do que eu? U

A fuga das palavras

- Pai, tenho uma pergunta para te fazer. - Sim? - É um pouco inusitada. O pai já não estranhava certas palavras que o miúdo utilizava. Inicialmente irritava-se, no entanto, foi percebendo que afinal as usava com propriedade, como quem calça pela primeira vez os ténis preferidos. Aquele brilho, aquele sorriso, aquela felicidade! - Tu sabes o que é a poesia? - Não. O petiz ficou perplexo com a incipiente resposta. No olhar, germinava uma certa desilusão. - Vá lá, pai! Essa não é a tua melhor resposta! - Já tentaste o dicionário? - Quero a tua resposta. No dicionário, as palavras não têm futuro, estão presas ao que foram. - Consideras o dicionário uma prisão? - Não tinha pensado nisso, mas até faz sentido: cada palavra vive na sua cela dentro do dicionário. - Cada cela será a definição, o significado de cada uma. - Sim. - As palavras que dão corpo ao significado serão as grades apertadas… - Sim. O Mateus fazia um esforço por acompanhar o pai, mas contin

Joga comigo!

O Mateus percorria vezes sem conta o estádio que tinha desenhado na calçada apenas com o olhar. Conduzia a bola até à baliza que o banco de pedra há muito sonhava ser - todas as pedras precisam de imaginação para renascer! O garoto fintava, rematava, celebrava. Era ali todos os golos, todos os jogadores que o sonho lhe permitia. Todos os heróis renascidos naquela calçada! Ao lado, o pai observava aquela correria e avaliava erradamente cada toque na bola, cada remate tentado. Dali, todos lhe pareciam falhados. Talvez jogassem em estádios diferentes! - Viste o meu remate, pai? O pai sorriu, prisioneiro da qualidade que a brincadeira do miúdo não aceitava. Talvez não soubesse que a imaginação nunca cresceu e nunca quis ser adulta. - Continua a treinar, filho! – foi o que conseguiu dizer.  E passava-lhe a bola para que ele rematasse novamente. - Viste o meu remate, pai? Sim, mas continuavam em estádios diferentes. Os olhos do adulto estavam reféns de uma perfeição que