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A mostrar mensagens de outubro, 2018

A princesa que não queria ler

Inesquecível o momento em que sentiu o indicador a percorrer a sua lombada: era ela a escolhida. Quando percebeu que a puxavam, arrepiou-se, susteve a respiração e fechou os olhos. Nem teve tempo de se despedir das histórias amigas. Mas a ideia de que iria viajar nos olhos de uma criança imediatamente apagou essa mágoa. Porém, quando reabriu os olhos, sentiu algum receio. Tudo tinha ficado escuro e sentia-se muito apertada entre as folhas. As amigas já a tinha prevenido para essa possibilidade. Seria só por umas horas. Aguentou firme até ao momento em que ouviu um ruído arrepiante. Nesse instante, apodereou-se dela um medo terrrível, pensava que cada palavra podia dividir-se para sempre, sílaba por sílaba… Ficou lívida, a cor das letras confundia-se naquele momento com a cor das folhas: “Será que rasgam as minhas páginas, espaço onde habito e faço sentido?” Depressa percebeu que alguém desfazia o papel que a embrulhava, sentindo, de novo, confiança. Em breve, daria de caras c

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

O rapaz que fazia perguntas difíceis

O Mateus aproximou-se do pai. Levava nos olhos uma pergunta ensaiada e as mãos ajudavam a transportá-la na concha que faziam. Como era seu hábito, nunca libertava a dúvida sem ter a certeza de que o ouvinte o escutava: - Pai, tenho uma pergunta para te fazer. - Faz a pergunta, filho. - Podes olhar para mim? O pai suspirou, enquanto se desligava do pequeno monitor. - Diz então. Já estou a olhar para ti. - Estás sempre a ler notícias! - Faz a pergunta, Mateus! - Eu acho que não vais saber a resposta… Nesse momento, obteve do rosto do pai um sinal claro de que a sua paciência estava a esgotar-se, por isso, não perdeu tempo: - O que aconteceria ao mundo, se as moscas morressem todas? E nada mais acrescentou. O pai apoiou-se na cadeira, libertando o ar que esperava pronto para acompanhar as palavras que dariam forma a uma resposta. Mas não, nem uma palavra, o ar saiu mudo, perplexo, assustado com aquela dúvida inesperada. Teria ela pés a cabeça? Que mosca o teria